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Livro relançado de Aluísio Azevedo já ressaltava em 1895 descompasso entre sexo e casamento

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Ontem e sempre

Livro relançado de Aluísio Azevedo já ressaltava em 1895 descompasso entre sexo e casamento

A julgar pelas cartas que chegam todos os dias à redação das revistas femininas, a vida sexual das brasileiras casadas vai mal. A situação descrita pelas leitoras não é muito diferente do quadro pintado por Aluísio Azevedo em 1895: "Mentirá todo aquele e mentirá toda aquela que disser que a presença de sua esposa, ou que a presença de seu marido, lhe foi sempre agradável; e mentirá, se não confessar que muitas vezes se prestou a satisfazer os desejos dos cônjuges com sacrifício de todo o seu ser", diz um dos trechos do Livro de uma sogra , que a Casa da Palavra põe nas livrarias até o fim deste mês. Na obra, que ganha uma segunda edição depois de mais um século escondida em sebos, Aluísio Azevedo mete a colher em assuntos de marido e mulher. Na voz de Dona Olímpia, a sogra, personagem inspirada em sua mãe, o escrito revela o que se passa por trás das portas trancafiadas das alcovas na última década do século 19: pouco sexo e muita rotina. "Às vezes, sem razão, não podia demorar a vista sobre meu marido: irritavam-me nervosamente os seus gestos mais simples e naturais. Uma ocasião, em que o contemplei pelas costas, assentado à sua mesa de trabalho, todo embebido no que estava fazendo, com a cabeça baixa, um gorro de seda preta, os ombros envolvidos num xale que lhe escondia os pescoço, desejei-lhe a morte, e tive de fugir dali para não disparatar com ele." Aluísio mexeu onde não devia e saiu chamuscado de críticas. Pelo excesso de naturalismo e pelo despudor em rimar sexo e saúde, a obra foi considerada simplista e o autor, mais uma vez, tachado de maldito, como já acontecera no lançamento de O cortiço . Cento e seis anos depois, os exageros de estilo de Aluísio Azevedo tornam o livro mais divertido. Uma dose de humor providencial, a ironia que o leitor precisa para constatar que, até hoje, pouca coisa mudou dentro das quatro paredes de um casamento. Desejo - A editora de sexualidade da revista Cláudia , Laura Muller, 31 anos e casada há 11, traduz em números o que muito gente conhece na prática. "Antigamente, as leitoras queriam saber como atingir o orgasmo. Hoje, elas perguntam como manter o desejo no casamento. Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana revelou que o desejo vem caindo significativamente nos últimos anos. Coisa de 30 a 40 por cento." O consultório da terapeuta sexual e colunista do Jornal do Brasil Regina Navarro Lins, 52 anos e há um ano no terceiro casamento, reflete a mesma tendência: "Dois terços das minhas pacientes fariam de tudo para voltar a sentir desejo pelo marido. Uma delas chegou aqui dizendo que, se o gênio da lâmpada aparecesse, ela faria apenas um pedido: recuperar o desejo." Muito antes da invenção da pílula anticoncepcional e sem queimar um sutiã sequer, a sogra criada por Aluísio Azevedo dava tratos à bola para descobrir por que, afinal, casamento e desejo não dividiam a mesma cama. A intenção de Olímpia era apenas uma: salvaguardar a felicidade da filha Palmira. Em nome da satisfação da moça, escreveu o Manuscrito de Olímpia, onde reuniu preceitos sobre a vida a dois. Chama atenção no texto as considerações sobre a importância do orgasmo feminino e a dissociação que a sogra faz entre sexo e amor. Uma ousadia desmedida para a época. Surpresa - "Ela descasca o amor romântico", afirma a pesquisadora Núbia Melhem Santos, 50 anos, que redescobriu o livro e assina o prefácio da nova edição. Núbia, que já se casou duas vezes, ganhou um exemplar da obra de um ex-namorado, em 1976. "Achei o livro impagável. Minha maior surpresa foi encontrar uma crítica bem-humorada e com bastante liberdade para falar do casamento em 1895." Vítima de um relacionamento infeliz, Dona Olímpia firma um pacto com a memória do marido morto. "Não! Minha filha há de amar e ser dignamente amada, (...) com toda a grande e próspera volúpia de que é capaz o verdadeiro amor. E não somente durante o noivado, mas sempre, por toda a vida, todos os dias e todos os instantes." Depois de analisar os altos e baixos da sua própria vida afetiva, Dona Olímpia dividiu a experiência conjugal em três fases: a primeira marcada pela felicidade moral e fisiológica; na segunda, de transição, os cônjuges foram atormentados pela dúvida; e finalmente a última, quando os dois sucumbiram vencidos pelo tédio e pelo cansaço. A partir daí, a gana de matar ou sumir do mapa só aumentou. Depois do nascimento da filha, a situação se agravou ainda mais. Nessa passagem, o autor volta a soar extremamente contemporâneo. "Quase sempre, a gravidez acontece para tapar um buraco no relacionamento. Então, quando a criança nasce, os pais já estão, tecnicamente, separados. A gente percebe isso logo na primeira consulta depois do parto", garante o terapeuta sexual e ginecologista Amaury Mendes de Araújo Júnior, 49 anos de idade e 23 de casamento. A difícil vida a dois Para retornar ao estágio de encantamento do início da vida de casado, Dona Olímpia só enxergava um caminho: evitar os exageros de intimidade. Tudo para que o casal apaixonado não virasse "feijão com carne-seca", como se dizia na época. "Não há estômago que resista a faisão-dourado todos os dias (...). O mesmo acontece no matrimônio: os cônjuges acabam invariavelmente por se enfararem um do outro, não pelo uso que fazem do seu amor, mas pelo abuso da convivência e da ternura." Assim, depois de escolher um marido para a filha, "que além de são e possante, fosse inteligente, honesto, simpático e carinhoso", Dona Olímpia começou, enfim, a ser sogra: fez de tudo para manter o casal afastado. Antes de o casamento se consumar, acertou com o futuro genro, Leandro, que ele e a filha Palmira jamais viveriam sob o mesmo teto. Se união em casa separadas, tão discutida atualmente, já deu o que falar, que dizer da preocupação com a iniciação sexual dos jovens? Dona Olímpia chegou a consentir que os noivos experimentassem "beijos furtados e desejos mal contidos". "É torpe lançar na mesma cama, sem transição, um rapaz e uma donzela, que horas antes se tratavam ainda com certa cerimônia e só se amavam por palavras, olhares e sorrisos. O salto é muito brusco; há de fatalmente perturbá-los. Reinará sempre mais vexame do que felicidade entre o casal que se vê duramente entalado na decantada lua-de-mel." Apesar de certa permissividade controlada, o genro penou até conhecer as verdadeiras intenções de Dona Olímpia e passar a tomá-la como santa. Durante um bom tempo, o pobre Leandro só pensou em se livrar da senhora. Na ocasião, chegou a invejar Adão. "Esse é que era deveras um felizardo, porque não tinha sogra!" Com sua visão mordaz do casamento e da sociedade brasileira no século 19, Aluísio Azevedo nunca quis saber de relacionamentos duradouros. A explicação talvez esteja numa preleção da sogra, seu alter ego feminino. "O constante esforço encefálico, para conceber e produzir grandes obras de arte, traz fatalmente consigo o precoce esgotamento nervoso; o que suponho, não preciso dizer que é de suma importância na felicidade conjugal." ( A.B. ) Livro de uma sogra, editora Casa da Palavra, 256 páginas, R$ 23. Até o fim do mês nas livrarias. A crítica do irmão "Depois do belo artigo anônimo de Caldas Viana, com que o Jornal do Commercio recebeu o Livro de uma sogra , depois das entusiásticas palavras que Valentim Magalhães ontem lhe consagrou no seu folhetim d A Notícia , depois dos elogios que mereceu Olavo Bilac na cintilante Cigarra , depois do ruído que se tem feito em torno do surpreendente volume, posso dizer publicamente que o novo romance de Aluizio Azevedo ( grafia da época ). é um acontecimento literário. Sem recear que atribuam o meu juízo aos laços de sangue que me ligam ao ilustre escritor. Não venho fazer a crítica do livro, que é um libelo terrível contra nossos costumes conjugais; como náufrago que sou do casamento, os meus aplausos a muitos olhos pareceriam suspeitos. Direi apenas que nenhum de seus romances que precediam ao Livro de uma sogra , Aluizio se mostrou, como agora, tão profundo analista de almas, bem tão senhor dos incomparáveis recursos de nossa língua. "Não sei de livro do nosso grande romancista escrito com tanta sinceridade e tanta limpidade", observou Valentim Magalhães. "Parece-me que ele atingiu neste livro o seu estilo definitivo - um estilo como o sonhava Zola - claro, transparente, amplo, sonoro, como um regato de águas cristalinas fluindo e cantando e deixando ver todos os seixos e areias do leito." Eu abraço inteiramente essa opinião. Aluizio pôs no retrato da sua Olympia tanta coisa da nossa mãe, que a leitura do romance despertou cá dentro uma tristeza enorme, e lembrei-me de que ela não poderá gozar a suprema satisfação de lê-lo. Se vivesse ainda, faria do Livro de uma sogra o livro de minha mãe, e abençoaria o talento e o espaço do seu filho. E a sua bênção te seria mais agradável - não é assim, meu irmão - que o próprio louvor da posteridade que espera a tua obra." Publicada em 'O Paiz', em 24 de setembro de 1895, e incluído na nova edição de 'O livro da sogra' Escritor morreu como solteiro convicto Se Artur foi um náufrago do casamento, como assume na crítica acima, seu irmão Aluísio jamais se aventurou nesse mar. O autor do Livro de uma sogra nasceu em 1857, em São Luiz do Maranhão, e morreu aos 55 anos, em Buenos Aires, depois de colecionar histórias de amor, sem jamais se arriscar numa união estável. A renitente aversão ao casamento acrescentou uma dose a mais de controvérsia à biografia de quem foi fruto de uma união malvista. Antes de se juntar a Davi Gonçalves de Azevedo, pai de seus cinco filhos, a mãe de Aluísio, Emília Amália, largou um casamento de conveniência. Ela fugiu de casa depois de flagrar o marido nos braços de uma escrava. Decidida como Dona Olímpia (a sogra do livro), Emília Amália pagou caro pela ousadia. Ao lado do segundo marido e dos filhos, atraía a ira e os comentários maliciosos da São Luiz do século 19. "Toda a família costumava ser apontada nas ruas. Quase ninguém dirigia a palavra a eles e muita gente evitava passar na calçada em frente da casa", diz Alexandre Arbex Valadares, 21 anos, assistente editorial de Casa da Palavra. "O caso foi tão comentado que no livro Aluísio Azevedo: uma vida de romance , o autor Raimundo de Menezes conta que o primeiro marido, envergonhado, se mudou para o Rio de Janeiro e nunca mais voltou." Com pouquíssimos amigos, os cinco irmãos cresceram muito unidos, sob proteção cerrada da mãe. Segundo a biografia, Emília Amália era uma leitora voraz e uma educadora das mais exigentes. Por influência dela, todos meninos aprenderam latim, contrariando a determinação do pai. "Ela fez isso porque queria que os filhos fossem literatos", conta Alexandre. Até a juventude, no entanto, Aluísio não parecia disposto a seguir o destino traçado pela mãe. Sonhava em ser caricaturista e ainda jovem começou a desenhar charges para as publicações locais. Ateu - Anos mais tarde, Aluísio se mudou para o Rio de Janeiro, seguindo os passos do irmão Artur. Na capital, ele esperava encontrar uma oportunidade no serviço público. Sem emprego, se sustentou com seus desenhos até que a morte do pai, em 1879, o levou de volta ao Maranhão. Na casa da mãe, enquanto revia os títulos da extensa biblioteca da família, começou a escrever. Para desespero da sociedade local, fonte de inspiração de artigos nada condescendentes. Ateu e anticlerical, Aluísio sempre fez questão de alardear suas convicções. O primeiro livro, Uma lágrima de mulher , foi lançado em 1880. "A fama dele sempre foi péssima. Ao mesmo tempo, nesse período, ele mantinha vários casos na cidade", acrescenta Alexandre. Entre as amantes, havia uma viúva de 18 anos. Como o romance era proibido por uma parenta que morava com ela, Aluísio esperava a madrugada chegar e entrava pela janela no quarto da amada. Por causa dessa mesma namorada, ele perdeu o vapor para o Rio de Janeiro. "Ele foi até a casa dela para se despedir. Os dois estavam sozinhos, mas a tia, para castigá-los trancou o casal dentro da casa." Aluísio não viajou e manteve o cavalheirismo. Para não comprometer a jovem viúva, alegou que perdera e embarcação por motivo de doença. Quando, enfim, retornou ao Rio de Janeiro, Aluísio Azevedo conquistou o sucesso. O romance O mulato , um manifesto abolicionista publicado em 1881, agradou à crítica. A consagração aconteceu nove anos depois com O cortiço , obra-prima do naturalismo que chegou a ser proibida em algumas escolas até meados do século 20. O Livro de uma sogra , escrito em 1895, foi o último trabalho do escritor. Depois de 19 livros, centenas de artigos e caricaturas, ele se mostrou frustrado com a literatura. Sem dar maiores explicações aos amigos, trocou as noites de boemia e a inquietação dos autores russos e franceses pela tranqüilidade e o conforto de um emprego público. Ainda em 1895, Aluísio Azevedo ingressou na carreira diplomática. O escritor serviu no Uruguai, na Espanha e na Argentinab, onde morreu como vice-cônsul. ANGÉLICA BRUM ***


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