contos DE Minha autoria.


STENIO CAPELA

"Tudo o que se pensa, ou é afeto ou aversão." (Robert Musil) Desde o nascimento de Stênio Capela, o Sr. e a Sr.ª Capela já sabiam que haveria problemas... Ao pousar, naquele instante glorioso, o perscrutador olhar de mãe em seu rebento, Ana percebera, numa inconciliável cumplicidade entre o amor e o desapontamento, que aquela criança fugia aos padrões normais: traços fisionômicos adultos, cabeça e membros em acentuada desarmonia com o corpo, assim viera ao mundo o primeiro e único filho de Bruno e Ana Capela, professores do ensino fundamental, a quem os minguados salários não permitiam melhor residência que a de um singelo apartamento no bairro de Engenho Novo. A infância do pequeno Capela transcorria dentro de relativa normalidade, embora nela se entrevissem, de modo velado, a angústia e a ausência de maior entusiasmo do jovem casal por seu petiz, que assumia, aos poucos, a forma brevilínea, ou seja, de um _anão. Aos sete anos de idade, Stênio Capela perdeu seu pai: o obscuro mestre do subúrbio fora surpreendido por um enfarto fulminante, enquanto retocava o jardim. Três anos mais tarde, nova tragédia sobreveio ao infante: um automóvel, dirigido por um alucinado, _assinou e _carimbou, de maneira cruel e definitiva, o "certificado de órfão" do pequeno Capela. Sozinho no mundo (os pais nunca lhe tinham falado de parentes) acabou, graças à intervenção de vizinhos, recolhido por um orfanato ligado a uma entidade religiosa de orientação protestante. Por esse tempo, Stênio Capela já sentia, na pele e no íntimo, com mais nitidez, o toque inconfundível do preconceito, a presença fria da discriminação. Afinal, naquele internato, era apenas mais um dos 120 garotos, cujas idades variavam entre 9 e 15 anos, destacando-se deles, contudo, por seus traços definidos, seu porte brevilíneo devidamente caracterizado, os quais o tornaram vítima predileta de constantes humilhações, que não lograria suportar por mais de três anos. Assim, aos 13, cansado delas e revoltado com o descaso da direção do orfanato, Stênio Capela fugiu, passando, então, a viver nas ruas do Rio de Janeiro. Nas ruas, território de ninguém, nação desprovida de leis, país sem fronteiras,bandeira ou hino, laboratório de meliantes, delinqüentes e desordeiros, Stênio Capela trava contato com o submundo de uma grande metrópole e conhece, de perto, o abraço inóspito da sarjeta. No início, a população marginal recebe Stênio Capela com desdém e desconfiança, escarnece de seu tipo físico, e o rapaz ouve, da boca da malandragem, expressões já suas conhecidas, mas, nem por isso, menos dolorosas, todas acompanhadas, invariavelmente, daquelas risadinhas, que alternam entre o deboche e o sarcasmo implacável: - Olá, _salva-vidas de _aquário! - Diga lá, _anão de jardim! - Oi, _jóquei de _gato! Com o correr dos dias, Stênio Capela assimilou os hábitos dos fora-da-lei, transformando-se, pouco a pouco, num deles, pois vinha convivendo, lado a lado, fazia já algum tempo, com mendigos, meninos de rua, prostitutas, travestis, passadores de drogas, cafetões, garotos de programa, isto é, a "fina flor" da temida vagabundagem carioca. Agora, Stênnio Capela conhecia a cidade como a palma de sua mão: praias, clubes, ruas, avenidas, esquinas, viadutos, cruzamentos, sinais, praças, becos, botecos, boates, toda a cidade, enfim, principalmente o centro e a zona sul, devidamente mapeada na mente do filho dos Capelas, que passara a viver de pequenos furtos, geralmente praticados sozinho, sendo forçado a tomar, para dormitório, um reduzido espaço de marquise, nos Arcos da Lapa, ainda assim partilhado por outros. Aos vinte anos, Stênio Capela, ou simplesmente Capela, para os seus, tinha já sua personalidade definida, personalidade esta formada a partir de um mundo cao, alicerçado em preconceitos e discriminações, que acabaram originando nele uma alma angustiada, em permanente conflito com seu espírito revoltado. Entregava-se, muitas vezes, aos devaneios e, sentado num banco de alguma praça em qualquer ponto do Rio, viajava em suas recordações. Lembrava-se, então, de sua mãe, único vestígio de carinho e ternura que lhe restara até ali. O pai era uma sombra longínqua, esquiva e arredia, bem mais distante que as lembranças da escola, onde a zombaria dos meninos, o desprezo das meninas e a indiferença dos professores lhe haviam escrito na alma as primeiras e indeléveis lições de amargura. Um dia, quando se achava numa dessas elocubrações ao ar livre, Stênio Capela foi despertado de seu transe por alguém que lhe tocou no ombro, vendo-se cara a cara com _Baianinho, comparsa de rua, batedor de carteiras, respeitado e admirado na roda dos malandros. - Salve, Capela, meu pequeno gigante! Falou o companheiro. - Onde andavas, homem? Faz tempo que a gente não se vê! Retrucou Capela. - As coisas aqui no Rio estavam complicadas para mim; os tiras, depois daquele assalto, onde fechei aquele guarda, passaram a me marcar sob pressão. Aí, mudei para São Paulo, pra ver se os homens me esqueciam, e acabei gostando; em Sampa as coisas são melhores. O Rio, agora, só a passeio! - Em que tens atuado lá, homem? Vai, desembucha! Baianinho riu aquele seu riso descansado, acendeu um cigarro, soltou uma baforada e, acompanhando a espiral da fumaça, continuou: - Ouve isto, parceiro: fiz uma reavaliação da minha "vida profissional" e, depois de refletir bastante, decidi que iria me "especializar" em roubo de relógios Rolex. Estou nisto, há um ano, e plenamente satisfeito, pois "trabalho" em campo escolhido, a alta sociedade, e, a cada dia, me aprimoro nesse tipo de assalto, muito mais rendoso, seguro e simples. - Com mil diabos, homem! Tu enxerga demais! Tua ideia e brilhante! - Pois é, meu pequeno gigante, tu estás cansado de saber que _jacaré que dorme no ponto vira bolsa_! Baianinho abraçou Stênio Capela e, dizendo que iria fazer uma visita rápida antes de voltar para a capital bandeirante, afastou-se, com aqueles passos inimitáveis dos malandros. Enquanto seguia, com os olhos, a retirada do amigo, que desapareceria na próxima esquina, Stênio Capela adimirava-lhe a finura das roupas e a elegância dos sapatos de camurça. Depois, resoluto, foi ao encontro daquela idéia, que, havia muito, vinha fustigando seu espírito e, agora, estimulada pela visão do "progresso" do companheiro de infortúnio, aumentara nele o sonho de uma "vida melhor". Dirigiu-se a um marceneiro, na Rua do Rosário, a quem havia encomendado um banquinho, com cerca de vinte centímetros de altura, no qual pudesse subir com segurança. À noite, num miserável quarto alugado no centro do Rio, também dividido com outro camarada, Stênio Capela redesenhou, no mapa da memória, a localização dos principais restaurantes, shoppings e banheiros públicos da cidade. Antes de dormir, num misto de expectativa e ansiedade, deu os últimos retoques em sua _nova tática_, doravante seu "cavalo de batalha". naquela manhã, o miquitório público da Central do Brasil, apresentava, como de praxe, grande movimento. Stênio Capela entrou, furtivamente, no recinto, com seu banquinho debaixo do braço, e colocou-se em posição estratégica, com visão total do banheiro, aguardando a hora exata para agir. Um homem de meia idade, usando terno preto e com aparência de executivo, entrou, procurou o miquitório, preparou-se e começou a urinar, assoviando um trecho da abertura de "O Barbeiro de Sevilha". Ligeiro como um raio, Stênio Capela aproximou-se, colocou seu banquinho ao lado dele, subiu, ergueu as mãos, segurou, com força, os testículos do desconhecido e, exibindo uma cara de poucos amigos, ordenou, em voz baixa e gutural: - Boca fechada! Passa a carteira, rapidinho, senão eu pulo daqui agora! A inesperada ação do meliante, aquela sua cara medonha e, principalmente, a terrível dor nos testículos, deixaram o homem atordoado, e, antes que Stênio Capela repetisse a ordem, meteu a mão no bolso e entregou a carteira àquela figura sinistra, que desapareceu tão subitamente como surgira, enquanto Otávio Bazanela, um profissional liberal, quedava imóvel, completamente atônito. Em seguida, animado pelo sucesso da operação, Stênio Capela escolheu um tradicional restaurante do centro da cidade, preferido pelas classes empresariais, e ali usou, com pleno êxito, do mesmo estratagema, mescla de astúcia e sadismo. Desta vez, a vítima foi um velho, que, após almoçar, dirigiu-se ao banheiro do elegante recinto, onde Stênio Capela já se instalara, à espera do alvo e do momento certos. Pego de surpresa, enquanto descarregava a bexiga, o homem sentiu violentíssimas dores nas genitálias, aumentadas, sem dúvida, pelo terror que experimentou, quando, ao olhar para o lado, deparou com aquela estranha figura, encima daquele banquinho, com dentes trincados, apertando, fortemente, seus "venerandos bagos" e exigindo sua carteira, sob ameaça de pular e ficar pendurado, caso esta não lhe fosse entregue. Louco de dor, Humberto Caldeira, parlamentar aposentado, livrou-se, o mais depressa que pôde, de seu algoz, entregando-lhe a carteira, mesmo sem quase nada entender. À noitinha, bastante cansado, mas um Stênio Capela radiante, orgulhoso, com a alma em festa, sentado em sua cama, abria a primeira das nove carteiras, conseguidas naquele primeiro dia, primeiro dia de sua "nova vida". Nesse exato instante, o rosto do brevilíneo Stênio Capela foi iluminado por um _sorriso_, até então nunca visto... Valdenito de Souza RIO DE JANEIRO, julho de 1999


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