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Encontro marcado nas cartas Correspondência de Fernando Sabino e Clarice Lispector revela ansiedades e frustrações de dois autores célebres em início de carreira

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Encontro marcado nas cartas

Correspondência de Fernando Sabino e Clarice Lispector revela ansiedades e frustrações de dois autores célebres em início de carreira

CARTAS PERTO DO CORAÇÃO Fernando Sabino e Clarice Lispector Record, 224 páginas A publicação das Cartas perto do coração de Fernando Sabino e Clarice Lispector é um dos maiores acontecimentos literários do ano. Destaque-se um dos fragmentos de ficção contidos no livro: ''Ainda hoje'', diz Clarice, ''sentindo o cheiro da manhã gelada, pensei que cada um de nós oferece sua vida a uma impossibilidade'', e é muito dessa impossibilidade que falam as cartas trocadas. Mantida, com interrupções, de 1946 a 1969, a correspondência começa com Clarice em Berna (Suíça), dirigindo-se ao jovem escritor mineiro no Rio (junto a outros amigos), mas que ainda em 1946 se mudará para Nova York. Em 1952 será a vez de Clarice fixar residência em Washington, enquanto Fernando estará no Rio, passando o correio a circular entre as duas capitais. Trata-se praticamente de um romance epistolar - dando-se à expressão toda sua ambivalência - que tem um clímax com a preparação de A maçã no escuro e a publicação de O encontro marcado. Fernando e Clarice são no jogo das cartas dois parceiros formidáveis, apesar da assimetria inevitável. Nas cartas iniciais, ele conseguia dar muitas notícias, enquanto ela se reduz ao mínimo. Clarice chega a declarar que quando for capaz de escrever uma carta de notícias poderá igualmente escrever uma história com enredo. Os lances entre os correspondentes fornecem uma preciosa oportunidade para entender as dificuldades de publicação e o modo como funciona essa instituição chamada literatura. Isso se torna tanto mais doloroso porque, desde seu primeiro livro, Clarice era uma escritora reconhecida. A despeito da miopia (relativa, veremos) do crítico Álvaro Lins, declarando que ela estaria entre os chamados mas não entre os escolhidos no panteão das Letras, sua reputação só faria crescer nos anos 50 e se consolidaria a partir dos anos 60, depois de A maçã no escuro, A paixão segundo GH e outros textos-limite de nossa cultura. A trama é idêntica à de hoje: a divisão de campo entre os escritores feitos para vender e aqueles que, por mais prestígio tenham, vendem relativamente pouco e sustentam bem menos o mercado editorial. O temor da recusa, a ansiedade com o atraso da publicação exatamente para não mais precisar ficar preso à obra, a dificuldade de viver do que se escreve, tudo isso faz parte do drama existencial e literário de Sabino e Lispector. Ele vai se decidir pela via da crônica, passando mais de uma década sem publicar nada que considere tão relevante quanto O encontro marcado. Ela vai enfrentar problemas de sobrevivência depois de desfeito o casamento e de retornar ao Brasil, uma mulher sem profissão, a não ser a de escritora. Este é ponto: como se pode ainda hoje imaginar que alguém com a inteligência e o talento de Clarice tenha que depender de um meio editorial pouco afeito à audácia e ao pensamento deslocador? Essas questões não são externas à literatura, elas estruturam o discurso literário desde seu interior, e põem em questão o estatuto mesmo do que no Ocidente se chama, desde fins do século 18, de literatura. Para além de qualquer concepção transcendental, como se pode garantir, hoje, o espaço de reflexão e crítica de textos como os referidos acima, sem que necessariamente seja preciso fazer concessões comerciais? Nem mercadoria apenas, nem objeto de culto, alguns textos tornam possível uma reflexão radical e por definição ilimitada sobre o devir mesmo da cultura e da forma-Homem. Tal como a história de Martim em A maçã no escuro: um homem que precisou refazer-se a si próprio a partir do suposto assassinato da esposa e conseqüente fuga para o interior do Brasil. Nesse contexto é o drama da linguagem (como assinalou Benedito Nunes), as questões de gênero e sexualidade, a própria inventividade ficcional, as políticas da interpretação que se põem em cena. A questão permanece a mesma: afinal como escrever e publicar um tal livro? A quem se destina? Entregue ao editor Ênio da Silveira, da então poderosa Civilização Brasileira, o romance escrito em 1956 sairá, após muitos adiamentos, somente em 1961 e pela Francisco Alves. Cito a carta de Fernando Sabino de 16/02/1959: ''O romance com o Ênio, você soube a onda que criou a ameaça de devolução: foi uma gota dágua que fez transbordar o ressentimento dos escritores de modo geral contra o tratamento dispensado pelos editores. Estão em crise e a coisa foi para os jornais, movimentos de parte a parte em defesa dos dois grupos - acabaram, como sempre, metendo o governo no meio só para atrapalhar''. Numa outra perspectiva, a correspondência é também a prova de que as instituições se movimentam pelas ligações de afeto. É através de seus escritos - cartas, crônicas, contos, romances - que os sujeitos vão se constituindo uns em face dos outros. E no lance dos impulsos afetivos eles se formam enquanto homem e mulher, afirmando seus nomes próprios, índices de assinatura: Clarice, Fernando // Lispector, Sabino. Assim o fino tecido da relação se compõe - ao lado das alegrias e satisfações - de atrasos de recebimento, demora em responder, extravios, reiteração de assuntos, lacunas, dúvidas, indagações. Nada disso é simples falha, possível de evitar com facilidade. Esses erros, na vida e na literatura, são quase tudo e, como vêm movidos por paixões, afirmam-se mais ainda no espaço aberto da afeição. ''Estou sempre errando'' registra pontualmente Clarice logo numa das primeiras cartas, dando vez ao entrecho decisivo de seu ''romance'' com Sabino. Os dois vão aprender a errar juntos, na dificuldade de escrever as cartas e de sustentar o frágil enredo que os une, o de uma apaixonada amizade literária, expressa das mais diversas maneiras. O objeto-carta não é o lugar neutro de um uso. Mais do que um veículo comunicativo, ele se torna fonte primordial de subjetivação e, como tudo se faz por meio de ''movimentos simulados'' (lindíssima expressão de Sabino, recorrente nas cartas), desfazem-se os limites entre ficção e realidade. Daí emergir a importante questão do caráter. Em franca auto-ironia Sabino se qualifica, com algum fingimento, de ''sem-caráter'' e fala de seu livro como talvez engendrado pelo ''cinismo''. Clarice responde discordando totalmente. É nessa zona vital de desacordo e afeto, de eletivas afinidades, que brotam as frustrações (explícitas ou caladas), os entraves, os projetos fracassados, os temores, os desgastes financeiros, as separações amorosas. O resultado é o texto, tramado pela amizade limítrofe do amor, por assim dizer dis-simulados, num movimento todo interior e precariamente exteriorizado. As cartas formam o lance mais forte de uma heterobiografia - um escreve para o outro, um assina com o outro, tornando-se co-autores de uma mesma e densa história. A maior expressão de carinho virá justamente com o caso de A maçã no escuro e o de O encontro marcado, em 1956, mesmo ano do lançamento de Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa), que os deixa maravilhados. Aí é quando a noção de erro se complica ao extremo. Solicitando-lhe correções de escritor, além da referida intermediação junto a Ênio da Silveira, Clarice envia a Fernando os originais de A maçã no escuro. Ele responde com diversas observações, que posteriormente considerará ''atos de violência''. Violência inerente ao amor, o que não exclui a mais refinada delicadeza, muito ao contrário, esta predomina largamente. Clarice incorpora a maior parte das ''correções'', que totalizam cerca de 80 páginas refeitas num volume com em torno de 400. Não sem hesitar, ela acata sugestões que já correspondiam em grande parte a suas dúvidas e aporias inventivas. As anotações do amigo ajudaram, pois, a resolver um embate interior, os dilaceramentos da escrita. Há, no entanto, um erro sobre o qual gostaria de me deter. Esse diz respeito ao prefácio de A mação no escuro e à presença do eu-narrador-autor ao longo da narrativa, ambos suprimidos na versão final. Ocorreu, como desenlace da história, o seqüestro do autor ou autora. Tal é o nó problemático da colaboração. A maçã no escuro é, em minha opinião, de que podem discordar outros leitores claricianos, o livro mais intenso da autora. Não que seja necessariamente o melhor, este é o ponto, se levarmos em conta somente a qualidade da realização literária. Interessa-me a força de pensamento que articula o texto e se afirma através do errar. Embora o considere extraordinário tal como chegou até nós, acho uma grande perda a retirada do prefácio assim como de todas as marcas de presença da autora, que dizia ''eu'' em diversos outros lugares (disso permaneceram alguns vestígios). Seria, contudo, da maior importância que o livro tivesse um construtor ou uma construtora explícitos. Dois construtores, na verdade: Martim (o protagonista) e Clarice, um homem duplo de uma mulher, sem que ninguém tenha primazia na história em curso. Na França o livro ganhou o título expressivo de Le bâtisseur de ruines (Gallimard): O construtor de ruínas, é genial, ainda que prefira a quase natureza-morta de A maçã no escuro. (Aliás, o título é um dos lances mais dramáticos na preparação do livro, e compõe por si só um romance dentro do romance.) Seria muito bom se o atual editor de Lispector assumisse reintroduzir o prefácio e todas as marcas explicitamente autorais da obra - as implícitas são todo o livro, segundo comenta o autor de O encontro Marcado: ''Ora, seu livro, da primeira à última linha, não é outra coisa senão alguém escrevendo um livro - e isso devido à sua concepção peculiaríssima, à técnica que você adotou, etc. - nunca porque você o diga a toda hora'' (26/09/1956). Apesar de ter finalmente aceitado esta recomendação, a própria Clarice justificara antes (em carta de 21/09/1956) sua presença no livro como forma de se separar claramente dos demais personagens, arrematando com a seguinte questão: ''Todo mundo sabe que alguém está escrevendo um livro, por que então não admiti-lo?''; em seguida sublinhava ainda mais suas motivações pela ''necessidade de enfim não ter medo de, afirmando, errar. [...]cortar a primeira pessoa não exigiria uma profunda alteração do livro?'' Sim. Confirmando essa hipótese, Clarice, ao comentar O encontro marcado, vai enunciar já em 1957 os valores que para ela importam e por isso se chocam contra o mercado das apostas literárias. É o abalo da própria instituição literária que ela arrisca: ''O livro [...]dá às vezes a impressão desconcertante de falta absoluta de literatura - e então se sente que este é o modo até sofisticado (sofisticado como contrário de naïve [sic]) de literatura.'' Essa frase performativa se alinha com uma série de outras que, sobretudo nas crônicas, propiciam uma rasura e um deslocamento da literatura como tradição beletrista: a busca do que ela chamou de ''antiliteratura''. Com efeito, o crítico Álvaro Lins tinha acertado em seu julgamento: Clarice Lispector nunca seria literata o suficiente para fazer parte da Academia. Ao contrário do que se imagina, o comparecimento da autora ao longo da narrativa somente faria embaralhar os papéis, dando relevo ao ator principal: a escrita fulgurante em torno dos personagens e do mundo. Nisso consistia o erro essencial que reforçaria a radicalidade da obra, construída não sobre os andaimes sem viço de uma instituição arcaica, mas como ato desconstrutor, performático, de um autor que nasce e morre junto com seu texto. Seria um gesto audacioso trazer os ''eus'' de C.L. de volta, ipsis litteris - mais uma vez, e no sentido inverso, com a colaboração do escritor Fernando Sabino. Isso tornaria a obra menos perfeita, porém mais errática, mais inteiramente aberta ao lapso, ao outro e à diferença. Ao leitor. Entenda-se: a correção gramatical se faz até certo ponto indispensável e, em todo caso, a maior parte das contribuições de Sabino foram preciosas. Porém o erro clariciano da ficção é fundamental para liberar com mais intensidade a força do texto e deveria, portanto, ser imitado ou, com a palavra de Fernando, simulado. É nesse sentido que o então editor Fernando Sabino em 1969 - dez anos após a última carta de Clarice Lispector -, ao receber os originais de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, recusa-se dessa vez a fazer qualquer correção. Seja, como reconhece, por não jogar mais a mesma partida de Clarice, seja por perceber que não há, nunca houve, nada a corrigir nessa tortuosa escrita - ele declina a solicitação da amiga. ''De qualquer maneira, espero poder - e certamente vou - relê-lo, como aos outros, uma, muitas vezes, até que ele também acabe fazendo parte de mim.'' De tal modo se encerra essa difícil e quase insustentável correspondência. Foram ''movimentos simulados'' que se realizaram de fato como ficção. A ficção de um impossível amor. -- Extraído do JB ***


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