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CARLOS DRUMOND DE ANDRADE - O POETA DE CORPO INTEIRO

*** O poeta de corpo inteiro Centenário traz a esperada edição definitiva da Poesia completa de Drummond Drummond foi um poeta inquieto Poesia completa Carlos Drummond de Andrade Nova Aguilar, 1.800 páginas R$ 190 Tornou-se lugar-comum dizer que há vários Drummonds, ou um Carlos Drummond de Andrade para cada gosto (ou mau gosto). A partir daí, trata-se de selecionar aquele que se considera o mais válido ou genuíno. Será o mais cáustico de Alguma poesia (1930)? Ou o poeta participante de Sentimento do mundo(1940) e A rosa do povo (1945)? Alguns dirão que é aquele outro, esquivo e meditativo, de Claro enigma (1951) – contra o partido experimental, que vota em Lição de coisas (1962). Os mais prosaicos ficam com o cronista de Versiprosa (1967), enquanto os nostálgicos hão de preferir sempre o memorioso Boitempo (de datação impossível). Ecologistas militam por Discurso de primavera e algumas sombras (1977). E certas figuras mais discretas confessam, em surdina: o melhor é o cantor licencioso de O amor natural (1992). Mas o gosto e as inclinações pessoais não são bons parâmetros para conhecer a poesia. Além disso, as preferências seriam mais naturais e aceitáveis se o Drummond eleito não se convertesse ao mesmo tempo no verdugo dos demais, relegados à categoria de maus elementos. Em outra época, o parti pris se justificava como uma forma de engajamento crítico, seja pela fé numa suposta “linha evolutiva” da poesia brasileira, seja pela adesão a uma causa política. E foi no contexto dos movimentos de vanguarda, no início dos anos 1960, que se acirrou a repartição do autor de “E agora, José?” No suplemento literário do Jornal do Brasil , Mário Faustino estendia sua fita métrica e classificava Drummond como um “pequeno poeta maior”, por evadir-se à polêmica poética. Em São Paulo, os concretistas se aferravam mais à contribuição de João Cabral de Melo Neto – e Haroldo de Campos elogiava em Lição de coisas exatamente o approach formal inovador que via faltar nos livros mais consagrados do mestre. As objeções às vezes passionais dos vanguardistas serviram, contudo, para inspirar uma crítica menos categórica e mais aprofundada sobre a variedade da obra drummondiana, de que são exemplos marcantes o livro Lira e antilira , de Luiz Costa Lima, e o ensaio “Um poeta invade a crônica”, de Flora Süssekind incluído em sua coletânea Papéis colados). Mas, se existem vários Drummonds (todos nascidos em 1902), um centenário serve ao menos para reuni-los, como uma espécie de confraternização. E assim – graças à benevolência dos números redondos – chega às livrarias a esperada nova edição da Poesia completa de Carlos Drummond de Andrade, pela editora Nova Aguilar. O volume, organizado por Gilberto Mendonça Teles segundo as disposições deixadas pelo autor, põe face a face em suas 1.800 páginas todas as personas do poeta que declarava “um eu todo retorcido”. “De ti a ti, abismo”, escreveu ele – e poderia estar apontando para suas próprias refrações. A fixação definitiva da obra nos ajuda a verificar o quanto essa distância abissal é ela mesma constitutiva da poesia drummondiana como um todo – o que estimula uma pesquisa sobre o que as diferentes facetas de Drummond podem ter em comum, para além da autoria. É o maior desafio crítico da obra reunida: verificar a possibilidade de haver, entre tantas poéticas distintas e em sucessão no tempo, se não um princípio geral, pelo menos um ângulo primeiro, que, sem deixar de implicar uma especificidade, seja vasto o bastante para abranger diferentes modos de criar poesia. E a leitura/releitura dessa longa obra mostra como também vale para o poeta Drummond o que ele escreveu sobre o amor: “é triste como é vário, / e sendo vário é um só” (“Estrambote melancólico”). Repertório poético já estaria contido nos primeiros livros Em alguma medida, os cinco primeiros livros do poeta já tocavamemtodos os temas que formariam para sempre o repertório drummondiano: as inquietações e os ressentimentos do indivíduo, seu desamparo no mundo celerado, o ceticismo religioso, o mal-estar da vida em sociedade, a repressão sexual e os conflitos amorosos, as fantasmagorias da memória. Essas questões se insinuam no ângulo da melancolia, onde se estabelece o divórcio entre o sujeito e seu mundo. Mineral e fria, ela é o humor circulante, por exemplo, na “Confidência do Itabirano”: “esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”. E é melancólica a figura que no “Poema de sete faces” faces” recebe o terrível recado de um “anjo torto”: “Vai, Carlos! ser gauche na vida.” Mas a melancolia é por excelência uma condição ambivalente: o peso de sua tristeza meditativa se equilibra com a leveza do humor e da ironia – muitas vezes da auto-ironia. Daí o contraste: de um lado, “mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração”; de outro, “Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores”. A elaboração poética da melancolia insere Drummond numa longa tradição da poesia ocidental, cujas origens remontam a Petrarca e ao Renascimento, atingindo um momento de apogeu na virada do século 18 para o 19, com o Romantismo. Mas o poeta das “retinas tão fatigadas” contrasta com essa linhagem num ponto crucial: Drummond é um cético: “Quando me levantar, o céu / estará morto e saqueado, / eu mesmo estarei morto, / morto meu desejo, morto / o pântano sem acordes” (“Sentimento do mundo”). Não há indício de revelação em parte alguma, nem nas alturas nem na natureza. Trata-se de um melancólico que não crê no entusiasmo visionário que faz parte da antiga teoria da melancolia dos homens de engenho superior. Esta deu origem ao conceito romântico de gênio: aquele sujeito que nasceu condenado a um temperamento tempestuoso, à custa do qual adquiriu um acesso privilegiado às altas esferas do entendimento e da criação. Uma semelhante ascese espiritual é vedada à melancolia sem entusiasmo de Drummond, que assim se coloca ao lado do homem “pequenino, em face de indecifráveis palmeiras” (“Elegia 1938”). Em seus livros mais participantes, escritos escritos sob o impacto da Segunda Guerra Mundial e da ameaça do fascismo fora e dentro do Brasil, nota- se que a visão propiciada pelo mau humor drummondiano nada tem de mística (ou mistificadora): não é “superior”, “genial” ou “sublime” e sim lateral, dirigida à revelação terrena domundo em sua variedade e do drama humano nele contido, tanto mais doloroso por parecer tão difícil ou mesmo impossível captar o seu significado. Resta a observação dos semelhantes, das coisas e de si próprio no fluir do tempo. E a sensação de dissipação e proximidade da morte: “Contemplo minha vida fugindo a passo de lobo, quero detê-la, serei mordido?” (“Os rostos imóveis”). O único plano ideal que resta ao melancólico cético, para além ou acima do mundo presente e seu desatino, é a memória. Mas esse vasto mundo dos “baús atulhados”, das “fotografias intoleráveis” – por mais idealizado que (re)apareça – não se confunde com o reino ideal das formas eternas e puras, que poderia decifrar o mundo. A memória individual não permite a contemplação de essências sublimes; ao contrário, ela confina ainda mais o sujeito no território vazio – abissal – das suas incertezas. A memória está “viajando através da carne” (“Retrato de família”), e é portanto o contrário do acesso espiritual dos entusiasmos geniais. Resta para esse olhar melancólico e desencantado – “decerto perdi os olhos / que tinha quando criança” (“Canto negro”) – o vasto mundo, seja o exterior, seja o interior, que se confundem num mesmo desamparo. Daí o interesse pela crônica de pequenos incidentes, ou pela narrativa de episódios e rapsódias privadas, com o recurso à forma tradicional do romance em versos curtos (“O caso do vestido”, “O elefante”, “A morte do leiteiro”). Daí também a infinita solidariedade com as coisas, os objetos do cotidiano, a que o poeta é grato pela sua lealdade, mas cuja liberdade e abandono também inveja: “São fiéis, as coisas / de teu escritório” – constata; no mesmo poema, o poeta que tantas vezes declara a insuficiência ou a inapetência da sua vista para a contemplação do sublime, aceita pousar nas coisas coisas “certo olhar, mais sério, não ardente” (“Indicações”). É verdade que os livros de Drummond no pós-guerra representam uma inflexão nova na sua poesia, marcada pela famosa epígrafe escolhida para Claro enigma, de Valéry: les événements m’ennuient (“os acontecimentos me entediam”). O poeta antes engajado e voluntário, agora se retirava da cena pública e se recolhia numa meditação interior e alheia, “enquanto o tempo, em suas formas breves / ou longas, que sutil interpretavas, / se evapora no fundo de teu ser” (“Remissão”). Como afirma o filósofo Giorgio Agamben, é no próprio ennui (o tédio) que se funda a melancolia poética e sua gastura diante dos fatos mundanos, com o abatimento que na Idade Média se chamava “acídia” – palavra cujo significado etimológico é “incúria”, “negligência”: o próprio contrário de “engajamento” ou “participação”. Seria de se esperar que, então, a poesia drummondiana se voltasse para o sublime extramundano (seguindo aliás a tendência dominante na época, com a chamada Geração de 1945). Mas essa expectativa se frustra tanto quanto a “Máquina do mundo”, rejeitada em sua promessa de revelações inauditas: “baixei os olhos, incurioso, lasso, / desdenhando colher a coisa oferta / que se abria gratuita ao meu engenho”. E novamente, como no início de tudo, “No meio do caminho”, o poeta se esquiva da visão, pois gastara as pupilas “na inspeção / contínua e dolorosa do deserto”. Permaneceu, portanto, a encruzilhada da melancolia cética. O “espetáculo do mundo” continua a ser “feito de mar ausente e abstrata serra” (“Fraga e sombra”), mas se apresenta nessa poesia já madura uma forte inclinação para a temática amorosa e erótica, não menos temperada pelas oscilações e ambivalências melancólicas. “Que pode uma criatura senão, / entre criaturas , amar?”, pergunta ele em “Amar” de flores”. Entretanto, tampouco a exaltação do amor encerra um sentido último e sublime – sendo antes uma busca humana, uma tarefa que a própria vida impõe e cujo cujo sentido desconhecemos: “Para amar sem motivo / e motivar o amor, Pedro, vieste ao mundo. / Chamote meu irmão” (“A um varão, que acaba de nascer”). Em Lição de coisas, nova reviravolta: o poeta declara o abandono do convencionalismo formal a que se dedicara nos livros anteriores, ao mesmo tempo em que se diz “de novo ofendido” pelos acontecimentos – não foi portanto à toa que esse livro tanto agradou aos poetas mais jovens que, concretistas ou não, buscavam precisamente esse enlace de experiência formal e contestação política. O mundo e a matéria terrena reingressam na poesia drummondiana, enquanto se consolida a sua maneira particular de elaborar a temática amorosa erótica, na mesma oscilação de gozo e frustração. Em A vida passada a limpo 1958), ele já mostrara que só no amor o melancólico cético vislumbra uma essência real, ainda que fugaz: “Amor: em teu regaço as formas sonham / o instante de existir” (“Véspera”). Mas a Lição de coisas ensina que esse vislumbre é véspera de seu próprio desvanecimento, pois o amor destrói o que ele mesmo cria: “Dois amantes que são? Dois inimigos” (“Destruição”). Os livros posteriores são bem mais marcados pela produção cronística do poeta, nas páginas dos jornais diários. Da mesma forma, em livros como Viola de bolso e Versiprosase reúne uma vasta produção circunstancial, anedótica ou simplesmente brincalhona. É a parte hoje menos valorizada da obra drummondiana, mas é interessante notar que ela representa uma contraface quase que necessária da poesia mais exigente de livros como A rosa do povo e Claro enigma. À meia-luz da melancolia sem entusiasmo, tudo é circunstancial e todo poema é de circunstância. Mais interessante ainda é que boa parte dessa poesia mais autocomplacente, feita para agradar leitores e amigos, tenha se tornado hoje mais hermética e inacessível do que a própria “Máquina do mundo”. Enterradas as décadas de 1960 e 1970, muitos dos nomes e dos eventos aludidos caíram para sempre no esquecimento. Em verso, eles se converteram em novos enigmas do mundo cifrado e sem sentido. É como se também essas centenas de páginas em papel-bíblia viessem corroborar o que o poeta escrevera em três versos apenas: “se o canto sai da boca ensimesmada, / é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa, / nem sabe a planta o vento que a visita” (“Nudez”). Extraído do caderno idéias, do JB ***


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