CONTOS DE MINHA AUTORIA.


Duas Vidas

Estas recordações sempre despertam em mim o sentimentalismo e a nostalgia, sentimentos que reputo como menores... A primeira vez que ouvi falar nele foi exatamente naquele momento de comunhão da família: a mesa posta, os pais na cabeceira, os filhos - aqueles que ainda viviam na casa paterna - ao redor; foi quando ela , com aquele seu jeito transcendente de dizer as coisas, falou: - "Nasceu Heitor, outro filho de José e Tereza e dizem que é uma criança linda!" Um novo primo , pensei comigo. Lembrei-me dos irmãos do recém-nascido, de quem guardava boas recordações, de umas férias... Morávamos em cidades diferentes e, raramente, víamos os primos, o que fazia dos encontros esporádicos um verdadeiro acontecimento. Quando vi o tal primo, pela primeira vez, êle estava com um ano de idade. Os tios apareceram la em casa, meio de improviso, com o pequeno a tira-colo. Era realmente um belo garoto de cabelos negros encaracolados, olhos vivíssimos, também negros . Risonho e sociável, era um destes seres que trazem um sol no centro da testa. Sempre fui fascinado por crianças, pois elas me enternecem, emocionam, humanizam, enfim, despertam minha sensibilidade. Aquele breve encontro com o primo Heitor, em minha adolescência, fêz aflorar grande afeicao pelo jovem parente. Cheguei a revê-lo mais duas vezes, quando completou dois e quatro anos. Sua beleza, graça e alegria amadureciam com ele. Pode-se dizer que sua infância, em Recife, era cercada de amigos e envolta nas artimanhas próprias de sua idade. Aos 7 anos, Heitor conheceu Roberto, um garoto da mesma idade e ambos travaram contato e selaram amizade na escola Vasco da Gama, no bairro onde nasceram e moravam. Os dois garotos se entreolharam na fila do patio, onde estavam perfilados e aguardavam o sinal para adentrarem a sala de aula, quando se mediram, se avaliaram, e o toque agradavel da identidade afagou seus espiritos inocentes. A partir deste instante, tornaram-se amigos inseparaveis e compartilhavam folguedos, aventuras, peripécias, mazelas, enfim, todos os empreendimentos inerentes à natureza humana, quando neste estágio da vida. Contrastando com a beleza morena de Heitor, Roberto era loiro, de olhos esverdeados e temperamento mais retraído, porém, igualmente belo. os amigos cresceram, prestando culto à natureza, aos esportes, ao cinema, como faz geralmente a mocidade. Passaram-se os anos que deixaram traços inconfundiveis e, de repente, os dois meninos entraram no reino dourado da adolescência. Cada vez mais companheiros, como era de se esperar, selaram a habitual cumplicidade em novas emoçôes, concedidas pela vida com certa dose de capricho e requinte. aqui, agora, temos os dois rapazes na plenitude dos seus dezesseis anos com o magnetismo e a luminosidade, ttípicos da mocidade, em todo seu explendor. Heitor tornou-se um moreno de porte atlético, sorriso cativante, olhos e cabelos negros como uma graúna, enquanto Roberto, de porte mediano, expandia um discreto charme e elegância. As garotas do bairro e redondezas suspiravam quando os amigos passavam por elas que, em cochichos, comparavam as duas estampas e comentavam - "O moreno tem um sorriso lindo !"; - "Adoro os olhos verdes do outro!"; Assim, entre elogios, suspiros, galanteios e outras formas de confete, os dois companheiros reinavam e, na escola, brilhavam no curso secundário. Eram presenças destacadas nas festas, nos bailes e nas reuniôes da juventude do bairro. As noites de julho eram sempre frias, mas, näo o bastante para tirar o entusiasmo daqueles jovens que invadiram os salôes do Internacional, clube tradicional do Recife. Em uma destas noites de sábado, Heitor e Roberto, trajando jeans, camisas esportes e tênis, adentraram o clube e se misturaram ao turbilhão juvenil. Sentados em uma mesa, ao lado da pista, flertavam com as garotas que, igualmente, sondavam o ambiente com olhar de rapina. O olhar de caçador de Roberto descobriu, no emaranhado de silhuetas, a bela morena que se destacava na pista de dança. Porte olImpico, cabelos curtos e negros, olhos ternos, tambem negros, a jovem atraiu de imediato o rapaz. Uma breve troca de olhares, um sorriso afável e o convite implícito fizeram com que Roberto a tirasse para dançar. O jovem par deslisou pelo salão, ao son do rock balada, exibindo o frescor, a graça e a luminosidade, traços definitivos da juventude. Ao terminar a mUsica, Roberto, abraçado à garota, se dirigiu à mesa, onde Heitor os acompanhava com um sorriso, quando, repentinamente, tudo aconteceu . Um rapaz, de mais ou menos vinte anos, surgiu de algum ponto do salão e barrou a passagem do casal; empurrou a garota para o lado, e, antes que Roberto esboçasse qualquer reação, sacou de uma arma e disparou três tiros no peito do rapaz que tombou morto. O estranho desapareceu tão inesperadamente quanto chegou. Paralizado com O impacto daquela cena, Heitor entrou em estado de choque. O rapaz jamais conseguiu recuperar sua saUde mental e, desde entäo, leva uma vida vegetativa. Beatriz, protagonista involuntária da tragEdia, na vEspera daquela noite, havia terminado o romance que levou um noivo apaixonado ao desespero. Mais tarde, ela se tornou professora universitária e ensina literatura em uma faculdade do Recife. Casou-se e teve três filhos. Apesar de ter sido identificado, o assassino, até então, jamais foi localizado. Valdenito de Souza (novembro, 1999)


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