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Crônicas de Augusto Frederico Schmidt revelam o estilo peculiar de um autor desqualificado por suas posições políticas e riqueza

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Palavra de um poeta discriminado

Crônicas de Augusto Frederico Schmidt revelam o estilo peculiar de um autor desqualificado por suas posições políticas e riqueza

ANTOLOGIA DE PROSA

Augusto Frederico Schmidt Topbooks, 266 páginas

Poeta, ensaísta e cronista, uma vida também dividida entre a política e a dedicação ao comércio, o carioca Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) foi filho intelectual da Semana de 1922. No entanto, adepto do verso livre, só assimilou a atitude revolucionária dos modernistas na maneira de escrever. Seus temas lembravam mais os dos românticos, como a solidão e a morte, tanto em versos como em muitas das crônicas que ilustram esta coletânea de prosa, publicada originalmente pela Letras e Artes, em 1964. A divisão entre o interesse pelo moderno e o apego ao passado produziu uma figura polêmica, odiada por muitos e adorada por outros tantos, que sabiam compreender sua complexidade, como registrou o poeta Carlos Drummond na crônica de 9 de fevereiro de 1965, publicada no Caderno B . ''Outros poetas são vigilantes, contidos, econômicos até esqueléticos. A natureza assim os determinou. Ele, ao inverso talvez se constrangesse até ao esgotamento e a esterilidade, se tentasse comprimir o fluxo vocabular. E perderíamos, com essa imagem deformada, a intensidade do seu ser lírico, o que nele era tão típico e insuscetível de regulamentação teórica e formal - o melhor e mais caloroso Schmidt.'' Jornais - Schmidt também empregou seu talento na atividade jornalística. Antologia de prosa é uma seleção de seu trabalho como cronista em jornais como A tarde , Correio da manhã e O Globo , em que enriquece passagens corriqueiras do cotidiano do Rio de Janeiro com o mesmo tom lírico que marcou seus poemas. Seja em um episódio simples como a descrição de um ambulante em ''Negócio de ocasião '', seja em referências à literatura, como o apaixonado relato sobre o escritor Albert Camus reproduzido abaixo, Schmidt quase sempre imprimia à escrita um traço de evocação ao passado e menções à morte. Essas características marcaram sua obra desde a estréia em 1928, com Canto do brasileiro . E, como lembra o poeta e acadêmico Lêdo Ivo, ao influenciarem sua crônica, contribuíram para torná-la singular dentro do gênero. ''Schmidt pertence ao modernismo, mas não ao modernismo do poema-piada. Sua voz é grave, dissonante, voltada para as coisas perdidas. Secretas. Sua prosa é rica de artifícios poéticos e dotada de uma forte carga biográfica inspirada pelos autores franceses'', define. Mas Schmidt não era controverso apenas por seu estilo literário. ''Ele foi diferente em tudo. Na riqueza, pois era muito rico. Na gordura, pois era muito gordo. Além de ser muito influente politicamente'', lembra Lêdo Ivo. Moderno - O êxito e a polêmica marcaram a trajetória do poeta em todas as (muitas) atividades que exerceu desde os 14 anos, quando começou a trabalhar como ajudante de caixeiro. Em 1924, ele foi para São Paulo, onde travou amizade com intelectuais paulistas. De volta ao Rio, decidiu comprar a Livraria Católica, do poeta e crítico literário Jackson de Figueiredo, e transformá-la na Livraria Schmidt Editora. Paralelamente à produção poética - que depois de Canto do brasileiro , estendeu-se por Cantos do liberto (1928), Navio perdido (1929), Pássaro cego (1930), Desaparição da amada (1931), Canto da noite (1934) e outros 11 livros até sua morte, além dos volumes de memórias Galo branco (1948) e As florestas (1959) - Schmidt fez fama como editor. Foi ele o responsável por lançar alguns dos maiores nomes da literatura brasileira, como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, João Cabral de Melo Neto e Gilberto Freyre. Empreendedor, Schmidt também foi pioneiro ao apostar na formação de uma cadeia de supermercados. Na década de 50, ajudou a criar a Distribuidora de Comestíveis, ou Disco. ''Era uma figura admirável, mas havia muita rivalidade dos outros poetas para com ele, pelo fato de Schmidt ser um homem rico, preocupado com negócios. Isso dava inveja'', recorda o escritor Autran Dourado. Direita - Se o papel de comerciante já incomodava a comunidade intelectual, foi com sua faceta política que Schmidt mais despertou inimizades. Além da proximidade a Getúlio Vargas, ele foi uma das mais influentes figuras do governo de Juscelino Kubitschek. Uma forte antipatia intelectual contra Schmidt surgiu por seu diálogo com figuras da direita, principalmente quando apoiou a deposição de Jango e o golpe de 64. Porém, com o tempo, o poeta tornou-se forte opositor do militares. O repúdio político acabou gerando uma indiferença em relação às suas obras e atirando o escritor num ostracismo que o poeta Ivo Barroso considera injusto. ''Schmidt era injustamente colocado na prateleira por ser filiado à direita. Havia uma discriminação ideológica contra ele. O retorno de sua prosa é uma forma de corrigir esse problema, uma vez que só é possível julgar um artista através de sua obra e não por suas posições ideológicas'', defende. ''Camus não fazia política nem traficava com as letras, não desejava as honras comuns do mundo com que tantos, pouco ambiciosos, se satisfazem'' Albert Camus conheceu melhor espécie de glória literária. No que desejou transmitir foi compreendido exatamente, apesar de se ter comportado o escritor sempre sem concessões. Em louvor desse homem revoltado, mas sóbrio e honesto, pode-se dizer que seu caminho não foi o de todo o mundo. A notoriedade bateu-lhe à porta; Camus não saiu a procurá-la. Estou certo de que o próprio Prêmio Nobel que lhe conferiram foi uma surpresa para ele, bem maior do que para o público. Não fazia Camus política, nem traficância com as letras; não desejava as honras comuns do mundo, com que tantos, pouco ambiciosos, se satisfazem. Trazia uma revelação e uma queixa, esta última não se sabe se a formulava por conta de outros seres ou se atendendo a uma íntima necessidade - possivelmente as duas coisas. Como romancista, exprimiu um fenômeno impressionante do nosso tempo: o alheamento do homem à sua própria tragédia. Os seres de Camus não participam, na medida do que seria admissível, dos acontecimentos em que estão mergulhados. Aos poucos, entre a personagem e o seu destino, se estabelece uma espécie de zona de frio, que permite àquela transformar-se em espectadora do seu drama. O ''estrangeiro'' não se sente intimamente solidário, nem com o ato que praticou, nem consigo mesmo quando é castigado. Vê a sua dor e o fim de suas esperanças com uma indiferença que não é indiferença, mas resultado da incapacidade de aderir seja lá ao que for. Na Peste, as desgraças coletivas adquirem uma aura de semi-alucinação. O homem navega nas suas águas interiores como um nauta cego; não sabe para onde vai e não sabe quem é. Seu sofrimento é uma espécie de paixão da indiferença. A dor, de certa maneira, não dói, mas há na alma da criatura um vazio, que bem pode ser o vazio do verdadeiro inferno: ausência de Deus. Que importam ao ''estrangeiro'' a sua própria condenação e o castigo? Ele não se sente nem culpado nem vítima. Na verdade, não tem culpa, mas o destino impôs-lhe a necessidade de agir automaticamente. Quem é o culpado? O ''estrangeiro'' achou-se na contingência de carregar a culpa de alguém; para isto, bastou-lhe ter nascido. O amor e a caridade não acendem as suas fogueiras nos desertos que se estendem na alma das personagens de Albert Camus. Não haverá nada a entregar ao Criador na hora da morte - ou muito pouco. A vida gastou todas as energias, dissipou tudo o que é veemente no homem que Camus surpreendeu ao seu lado quando tomou conhecimento da existência de seus semelhantes. A revolta em Camus foi marcada por uma insaciável sede de moral. Ao contrário de Sartre. Durante alguns anos, falou-se de Sartre e Camus solidários e do existencialismo de ambos. No entanto, foram os dois bem diferentes e acabaram sendo obrigados a manifestar de público a dessemelhança profunda que os separava. Em Sartre - homem lúcido, mas com possibilidade de interesse por aspectos da existência bem mais numerosos - a revolta é um caminho para a desordem e a destruição dos valores convencionais, e dela nasce uma integral transformação de tudo o que importa à sociedade dos espíritos. Camus, em sua essência, mais revoltado do que Sartre, é um cultor da dignidade da coerência, e dispõe de um pudor de atitudes que lembra involuntariamente certas personagens da Revolução Francesa ressuscitadas e reinventadas por Michelet. Essa estranha composição de revolta e de gosto pela ordem indicava em Camus a necessidade inconfessada, e talvez impressentida, de preencher a falta de fé em alguma coisa. Lembro-me que Bernanos e ele se defrontaram - o que não poderia deixar de ter acontecido. Em Albert Camus havia uma fonte que secara, e o que não jorrava mais dessa fonte sensivelmente faltava à terra humana do escritor. Não conheço uma página úmida de lágrimas em toda a obra de Camus: uma nota de ternura, uma fraqueza. Em tudo - discreta, veladamente, é o drama da solidão do homem de hoje que impõe o seu tema, a sua nota grave, dura e inflexível. Camus perseguia e ao mesmo tempo procurava libertar-se de alguma coisa, com uma densidade contida: a Justiça. Ele bateu-se pela justiça de uma maneira diferente, jamais declamatória, porque ela era bem mais do que uma palavra para o escritor. Bateu-se com intensa paixão, mas sempre com um aspecto desdenhoso e impassível. Oscilava Camus entre o tímido e o orgulhoso. Não suportava nenhuma espécie de mistificação. Era um homem cuja revolta encontrou uma expressão clássica, depurada, despojada. Escrevia ele com uma dignidade, com uma altivez de estilo! O estilo é o corpo, definiu Paul Valéry. Mas a alma de Camus estava longe de encontrar o seu pouso, a sua paz. Não era um inquieto, ou alguém que procurasse Deus. Aceitava a vida como um desafio; recusava-se a qualquer metafísica. Mas amava a verdade. ''A verdadeira cultura vive da verdade e morre da mentira'', escreveu ele. Amava a verdade, mesmo a mais desprovida, a mais nua, a mais solitária, a mais dura, a menos cristã, a menos caridosa verdade. Era um homem sozinho; que julgava bastar-se. Um homem cioso de sua intimidade, de seus segredos. Morreu num desastre de automóvel, ainda moço, em pleno sucesso, mundialmente conhecido. Morreu na hora em que a maturidade total começava a adoçá-lo (...) (extraído do JB) ***


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