Bastidores Do Mundo Literário .


Os Dez Amigos de Freud

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Desvendando a mente de Freud

A partir de lista de livros indicados pelo pai da psicanálise, o filósofo Sergio Paulo Rouanet faz descobertas surpreendentes

Rouanet: 10 anos para realizar pesquisa inédita sobre as 10 obras que teriam feito a cabeça de Sigmund Freud

Da primeira vez em que se deparou com uma lista de ''bons livros'', escrita de próprio punho por Sigmund Freud a pedido do editor Hugo Heller, até o momento em que pôs o ponto final em Os dez amigos de Freud (Companhia das Letras, 2 volumes, 426 páginas cada, R$ 75), o filósofo Sergio Paulo Rouanet levou 20 anos. A metade deles debruçado na pesquisa, realizada no intervalo de suas inúmeras atividades como diplomata, em Brasília, Berlim, Praga, Londres e em Paris. É um trabalho de fôlego, complexo e ambicioso: fazer um cruzamento da literatura com as idéias de Freud, sugerindo influências jamais identificadas. Mas não é preciso ser um especialista para acompanhar o livro, a prosa límpida de Rouanet, uma das características de sua obra, faz com que as mais de 800 páginas sejam devoradas como um romance ou história de mistério. Apesar da abrangência da pesquisa, Rouanet está lançando mais dois livros nesta Bienal: Idéias (Unimarco), com os artigos publicados na coluna mensal que escrevia no JB , e Interrogações (Tempo Brasileiro), com ensaios publicados em revistas especializadas. - Como você chegou a essa lista com as preferências literárias de Freud? - Ela é relativamente conhecida pelos leitores das biografias de Freud. Encontrei uma referência a ela pela primeira vez no final da biografia feita pelo Ernest Jones, A vida e a obra de Sigmund Freud . Li esse livro há 20 anos. Mas a idéia só tive há 10 e desde então venho trabalhando nisso. - Em que medida a escolha de Freud foi acidental? - É difícil dizer. Se alguém pedisse uma lista semelhante para um escritor na época da guerra do Iraque, ele provavelmente estaria lendo algo relativo ao Oriente Médio. A lista de Freud pode ter sido influenciada por preferências profundas, assim como pela leitura do jornal, razão pela qual um dos caminhos que segui foi ler de cabo a rabo a edição do jornal que Freud certamente leu no dia em que ele compôs a lista, o Neue Freie Presse . - Aonde você queria chegar? - A um confronto sistemático com cada um dos 10 livros. Em cada capítulo, tento resumir o livro, analisar o pensamento do autor, estudar sua relação com o meio e a época. E compreender qual seria a relação de Freud com este livro em especial. Em que medida ele pode ter encontrado materiais para suas idéias naquela obra e também de que maneira ela pode ser iluminada pela aplicação da teoria psicanalítica. Procurei uma unidade externa, dada pelo espírito do tempo, o princípio do século 20, e interna, dada pela subjetividade de Freud. - Qual dos 10 livros teve a maior influência na obra de Freud? - É engraçado que, na carta que enviou ao editor Hugo Heller, Freud faz questão de dizer que não está fazendo uma lista dos dez maiores livros da literatura universal. É daí que vem a metáfora dos bons amigos. Os bons amigos não são as melhores pessoas, as mais inteligentes, santos ou heróis. São pessoas com quem a gente conversa. Alguns dos livros mencionados poderiam até ser classificados como subliteratura. À primeira vista, sem muita reflexão, eu diria que um dos livros que têm relação mais direta com a obra de Freud é o do russo Merejkovski, autor de uma biografia romanceada de Leonardo da Vinci. Praticamente todos os materiais que Freud usaria para escrever sobre as recordações de infância do Leonardo da Vinci vieram da leitura deste romance. Ele analisa um fato em especial: Leonardo da Vinci se lembra de que, quando bebê, um abutre posou em seu berço, abriu sua boca e colocou a cauda lá. Freud faz toda uma análise em cima deste fato, imagem que foi encontrada no romance do russo. Ele também encontrou ali a informação sobre a hiperafetividade da mãe do pintor em relação ao filho, que teria influenciado sua orientação homossexual. A hipótese do abutre é das mais curiosas. Está na cara o que isso significa psicanaliticamente: uma fantasia de felácio. O abutre, para os antigos, era um pássaro feminino, que concebia com o vento. Isso, para Freud, seria maneira pela qual Leonardo simbolizava que ele era uma criança sem pai. O problema é que houve um erro de tradução do livro para o alemão. O pássaro não era um abutre, e sim um níbio , um milhafre, ao qual não estão associadas essas imagens de feminilidade. Existe outro imaginário que Freud não explorou, mas que eu tentei explorar. O milhafre é um pássaro que, segundo a sabedoria popular, é invejoso, maltrata a prole. Portanto, a pista teria levado a um caminho completamente diferente. Ou seja, em vez de Leonardo ser um menino mimado por uma mãe excessivamente carinhosa, ele seria uma criança rejeitada por uma mãe invejosa e repressora. Um erro de tradução teria levado Freud a um erro de interpretação. - Você nota que, apesar de toda a erudição de Freud, ele também gostava de subliteratura. - Exatamente. Freud, como bom psicanalista, pega a carta de Heller e diz mais ou menos isso: ''Deixa eu começar interpretando o seu pedido. Você está querendo dez bons livros. Você não quer os dez maiores da literatura universal, os mais significativos do ponto de vida científico. Nesta caso, poderia indicar Sófocles, Shakespeare ou Milton. Eu interpreto bons livros, como bons amigos. O adjetivo bons remete a indivíduos com que a gente se relaciona bem. Não vou tratar os melhores, os mais sublimes os que mudaram o mundo, mas o livros que são bons amigos.'' A lista mostra que Freud consumia, sim, o que hoje nós chamaríamos de literatura de massa. - É estranho que Freud não tenha citado Schnitzler, que tanto parentesco tem com sua obra. Por quê? - Schnitzler foi um dos que responderam à enquête. Era um contemporâneo de Freud, seus livros não tinham passado ainda pela triagem do tempo, ele era recente demais, contemporâneo demais para ser citado. - O Livro da selva , citado por Freud, hoje é lido como uma história infantil. Mas, de alguma forma, teria sido uma antecipação dos Homem dos Lobos? - Freud começou a analisar o Homem dos Lobos depois, em 1910. Mas há uma enorme quantidade de contos infantis em que aparece o lobo como personagem, como a história da Chapeuzinho Vermelho. Freud tratou do medo das crianças por animais, a zoofobia infantil. O Pequeno Hans tinha medo de girafas e depois de cavalos. O Homem dos Lobos tinha medo dos lobos. No caso do Pequeno Hans, ali havia a representação do pai. Ele tinha medo do pai-cavalo. - O Kipling é estudado ainda hoje. Zola também. Mas o mesmo não se pode dizer de Anatole France, outro autor citado por Freud. Por que escritores que fizeram a cabeça de uma geração são esquecidos na outra? - As reputações literárias são mais ou menos como uma bolsa de valores, com ações que sobem e descem. Na geração dos nossos pais e avós, Anatole France era um dos autores mais importantes do mundo. Era um homem do ceticismo, da ironia fina, da razão, do não-sentimentalismo. Numa época em que estes valores eram predominantes, havia uma sintonia do homem que os exprimia com a opinião pública. Mas aquela ironia corrosiva ficou inadequada para exprimir coisas tão terríveis como as que aconteceram durante a guerra. Essa é uma explicação sociológica. Psicanaliticamente, há a ascensão e o declínio, mas também a regressão, a volta do recalcado. João do Rio, por exemplo, foi recalcado por muito tempo. Era considerado um autor frívolo. Depois descobriu-se que era precursor de Walter Benjamin. Aí entrou na moda. Foi trazido das catacumbas da amnésia coletiva por algo puramente circunstancial. O coitado do Anatole France, ao contrário, foi esquecido. - Isso pode um dia acontecer com Freud? A psicanálise pode estar perdendo seu poder explicativo, assim como aconteceu com o marxismo e outras grandes narrativas? - Pode ser. Mas há certas glórias que não estão mais sujeitas a este movimento de bolsa. Verdadeiramente imortais, alguns autores são subtraídos às oscilações cíclicas da reputação e da opinião pública. Esta talvez seja uma definição dos clássicos: autores cujas ações não são mais negociadas na bolsa. No caso de Freud e de Marx, acho que claramente está havendo este sintoma: depois de terem sido idealizados ao infinito, eles começam a perder importância. Talvez só agora Marx esteja livre para ser apenas um pensador e não o chefe de uma ortodoxia religiosa chamada marxismo. O declínio do Marx ideólogo liberou o Marx pensador para dizer coisas significativas para os nossos tempos. Aí eu aplicaria um conceito do Walter Benjamin, que é o índice de legibilidade. Benjamin diz que certas obras são obscuras no momento em que são escritas. Só se tornam legíveis um ou dois séculos depois. Só agora que o marxismo e o freudismo estão morrendo, in extremis , eles podem ser trazidos de volta, com todo seu poder explicativo. Pode-se dizer que Marx previu várias coisas que não se concretizaram. Mas estas previsões não tiveram chance de serem testadas, porque surgiram contratendências no mundo capitalista. Não houve pauperização da classe operária porque os sindicatos passaram a adquirir importância muito grande. Não houve exclusão social que levasse à crise geral do capitalismo porque as políticas estatais começaram a adotar medidas keynnesianas ou anticíclicas, que controlaram o desemprego. Agora, com a globalização, todas estas contratendências que acolchoaram o capitalismo foram deixadas de lado. E tudo o que Marx previu está acontecendo. _ E Freud? - Neste momento em que o freudismo está sendo contestado, quem sabe se a psicanálise coletiva pode finalmente deixar de ser um adendo da psicanálise individual? Acho que se pode explicar o belicismo americano em termos de tendências econômicas, petróleo, os conselheiros neoconservadores do Pentágono etc. Mas pode-se pensar em algo mais tradicional, a relação de pai e filho, o complexo de Édipo. - No capítulo sobre Zola, você não trata exatamente do que ele e Freud tem em comum, mas no que eles se opõem. Por que, embora as teses do naturalismo e da psicanálise sejam tão diferentes, Freud cita Zola? - Eles têm diferenças, mas também semelhanças. No caso específico do livro que Freud selecionou, que é Fecundidade , a diferença é que Zola acreditava nas famílias numerosas e num antimalthusianismo patriótico. Para ele, a França estaria despovoada em relação à Alemanha e era preciso aumentar a população depois da derrota de 1870. As práticas de controle de natalidade, segundo ele, interferiam na saúde das mulheres e na saúde política da França. Freud não concordava, era malthusiano. Ele tinha seis filhos, achava demais. Sua grande descoberta teórica veio com a dissociação da reprodução do prazer. Neste sentido havia uma diferença radical. Mas ambos acreditavam no efeito nocivo de certas práticas de controle de natalidade. Segundo Freud, o coito interrompido era algo terrível para a saúde psíquica da mulher. Zola acreditava nisso também. Mas as motivações eram diferentes. Zola não queria o controle da natalidade e Freud percebia a relação deste tipo de prática e a neurose. Isso também é visível em relação à série de livros dos Rougon-Macquart, uma família com taras hereditárias, como o alcoolismo, que vão se perpetuando de geração em geração. Zola dá uma importância enorme à hereditariedade. Freud não. As famílias poderiam ser patogênicas na medida em que optassem por uma educação severa demais, o que poderia gerar personalidades neuróticas, mas não naquele sentido quase biológico de Zola. No entanto, a hereditariedade que Freud recusava no plano individual, ele aceitava no plano filogenético, no plano da espécie. Ele acreditava que na origem da humanidade teria havido de fato um incesto e um parricídio primordial. O que ele relativiza no plano individual, ele voltava a admitir no plano da espécie. - Também é curioso Freud citar Mark Twain, não? - Ele usa o Mark Twain como exemplo para sua teoria sobre o cômico. Este capítulo sobre Mark Twain é engraçado, porque Freud cita vários exemplos de episódios narrados pelo autor, mas ele cita tudo errado. Pouco a pouco fui descobrindo as fontes das principais citações. E minha surpresa foi total quando percebi que Freud citava de memória e as deformações eram gritantes. É interessante analisar estes ''erros'' à luz de seu trabalho sobre o ato falho.

[JB - 24/MAI/2003] ***


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