Bastidores Do Mundo Literário .


O FUTEBOL E AS LETRAS

O FUTEBOL E AS LETRAS ***

Os donos da bola

Os deuses do futebol, que deram ao Brasil um Pelé, fizeram Garrincha também

Augusto Nunes

[Garrincha]

Garrincha

Como o cavalo de raça, um craque se conhece pelo passo. A frase é tão boa que figura no manual dos truísmos do futebol. Mas merece tanta confiança quanto chuteira sem trava em campo molhado. Se os troféus distribuídos no Derby de Epson contemplassem tal quesito, o melhor puro-sangue inglês seria humilhado pela elegância soberba das passadas de um Pelé ou um Didi. Em contrapartida, Maradona correria o risco de acabar confundido com algum jóquei precocemente aposentado por excesso de peso. E Garrincha talvez nem conseguisse entrar nas empurrara para a direita. Explica, também, dores crônicas no joelho, tratadas com infiltrações que lhe abreviariam os tempos de glória. Dispensemos eufemismos: tecnicamente, Garrincha era um aleijado. Só que lidava com a bola como só gênios sabem fazer. E foi assim que o portador de um grave defeito físico se imortalizou como atleta profissional. Essas contradições aparentes ajudam a compreender por que o futebol é o esporte das multidões. Nenhum é tão democrático, menos excludente, mais infenso a limitações cavalariças: algum médico chegado ao turfe trataria de interceptá-lo para providenciar seu internamento na clínica ortopédica mais próxima. As pernas do maior ponta-direita da história desenhavam, ambas curvadas à esquerda, um desconcertante arco duplo. A deformação congênita explica o arranque extraordinário, semelhante ao de um Fórmula-1, que o fazia chegar segundos antes do marcador à bola que financeiras ou físicas. O universo das arquibancadas e gerais pode imaginar-se nos gramados sem sentir-se escorregando no terreno do ridículo ou da franca insanidade. Gente de baixa estatura pensa em Romário. Franzinos recordam a saga de Zico e Bebeto. Quem carrega quilos a mais acredita na reencarnação de um Coutinho. E os deserdados da sorte crêem que os deuses dos estádios, afinal, tudo podem. Eles nos deram Garrincha, aquele que seria a Alegria do Povo. *** Quando a bolada sobe à cabeça [] JOEL BIRMAN Quando Maradona sentiu na pele o terror iminente da morte, em conseqüência do uso continuado de drogas pesadas, decidiu ir a Cuba para se cuidar. Manifestou assim o seu desejo de tratamento para romper definitivamente com a sua dependência e até mesmo de continuar a sua vida sem mais precisar se drogar. Portanto, Cuba se enunciou como o lugar possível onde tal empreitada complicada poderia ser realizada. Se os cuidados que lá recebeu tiveram a eficácia de libertá-lo daquelas, ou não, pouco importa para o que está em pauta aqui. Isso porque não é a efetividade do tratamento, contra as drogas, que se propõe realizar a psiquiatria cubana que está em questão nesta discussão. Nós sabemos que Maradona poderia ter escolhido diversos países europeus e mesmo os Estados Unidos para fazer o seu tratamento, indo para as múltiplas clínicas especializadas ali existentes, já que não lhe faltariam recursos financeiros para isso. Trata-se de um homem rico e célebre, podendo ir para onde quisesse e bem entendesse. Porém, contrariando todas as expectativas do senso comum, decidiu ir justamente para Cuba, isto é, a isolada pátria do socialismo na América Latina. Certamente, a escolha pode parecer contraditória e até mesmo paradoxal. Daí porque contraria a concepção presente no senso comum, indo, pois, na contramão da maioria silenciosa do mundo todo. Porém, é precisamente este contraste patente que me parece revelador e pleno de significação, justamente porque evidencia nas suas entrelinhas o discurso que Maradona enunciava sobre o mal que dele se apossava e frente ao qual se sentia completamente impotente. Isso porque a psicanálise nos ensina que o fantasma do sujeito, sobre a sua possível cura, evidencia sempre, em contrapartida, a leitura deste sobre o mal-estar mortífero que dele se apossava. É justamente isso que está em jogo aqui. O que pretendo concretamente dizer com isso? A escolha de Maradona evidencia como, ao assumir realizar o seu tratamento num bucólico cenário socialista, articulava assim a sua adicção ao mundo capitalista propriamente dito. Esse, com efeito, que o transformou num ídolo do futebol mundial, permitindo que o menino nascido pobre na periferia de Buenos Aires ascendesse socialmente, foi também a condição de possibilidade para a sua ligação com a morte e as drogas. Como se o antídoto que escolheu para frear o consumo compulsivo dessas estivesse então presente num outro mundo, situado nas antípodas daquele que lhe conduziu para as sendas do mal. Vale dizer, Maradona acreditava secretamente que tinha mergulhado no abismo das drogas pelas múltiplas exigências que consubstanciavam as formas de vida presentes no capitalismo avançado. A sua ''salvação'', portanto, deveria vir de um mundo literalmente oposto a esse. Daí, a escolha de Cuba como seu cenário terapêutico. Enfim, a utopia socialista poderia curá-lo das mazelas mortíferas que o capitalismo lhe provocou. Este fantasma etiológico aqui em questão não pode ser considerado de maneira ingênua, pois se relaciona com as transformações ocorridas no mundo do futebol nas últimas décadas. Ele se transmutou, com efeito, de uma prática artesanal, inscrita nas fronteiras dos poucos países em que existia, numa milionária indústria transnacional que se encontra agora presente em todo o planeta. Até mesmo os asiáticos jogam futebol hoje. Tudo isso aconteceu justamente no contexto histórico em que Maradona se profissionalizou, sendo sob sua égide que foi alçado ao estrelato internacional, sendo comparado talvez apenas ao brasileiro Pelé, considerado ainda como o campeão dentre os melhores e por isso intitulado de o Rei Pelé. Esta comparação é bastante eloqüente, porque Pelé não teve o fim dramático de Maradona e continua a receber a admiração incontestável de todos. Parece-me, no entanto, que aquele é ainda uma figura de um outro momento da história do futebol, na qual a transformação desse numa indústria transnacional estava ainda começando. Por isso mesmo, Pelé permaneceu no Brasil durante quase toda a sua carreira, indo apenas para o Cosmos, nos Estados Unidos, no final de seu percurso como atleta. Tudo isso, contudo, deve ser inscrito ainda num outro registro. Como se sabe, os esportes em geral e o futebol em particular são as vias privilegiadas para a ascensão social de indivíduos originários das classes populares. Assim, pode-se nascer muito pobre, como é o caso tanto de Pelé quanto de Maradona, e se tornar uma pessoa de outra classe social num período muito limitado de tempo. Para isso basta apenas um talento especial no domínio do corpo e da bola. Em decorrência disso, o esporte passou a ocupar um lugar privilegiado na democracia mediatizada pela globalização, justamente porque coloca a possibilidade da ascensão social numa outra velocidade e temporalidade, relançando agora em outras bases o pressuposto igualitarista da modernidade. No entanto, este processo meteórico de ascensão social pode ser psiquicamente problemático. Ser socializado num bairro periférico das grandes cidades - permeado pela miséria, violência e trabalho exaustivo voltado para a sobrevivência - e alçado ao estrelato internacional coloca problemas sérios de regulação simbólica para estes indivíduos. O sistema de comunicação globalizado os transforma em ídolos para todo planeta. Isso promove um excesso nestes indivíduos, à medida que carecem de operadores simbólicos para regular tal investimento imagético de gozo. Paga-se um preço alto por isso. Até mesmo, às vezes, o indivíduo paga com a própria vida. Maradona não morreu, mas sucumbiu, enquanto Pelé soube tirar proveito disso, transformando-se num empresário de sua marca. Porém, estes destinos diversos não se devem apenas às diferenças de suas singularidades, mas também às novas exigências presentes na sociedade do espetáculo. O imperativo de performance, existente para as estrelas, atinge hoje limiares absurdos. A utilização massiva de drogas, como se deu com Maradona, é a pontuação paradigmática para se estar à altura da performance exigida. Esta formulação deve ser ainda inscrita num terceiro registro de leitura, qual seja, o mal-estar na atualidade. Esse ultrapassa em muito o que foi delineado por Freud, na aurora dos anos 30, em o Mal-estar na civilização . Isso porque agora as estruturas sociais que consubstanciavam a soberania, que ainda regulavam o mal-estar na modernidade, foram desarticuladas pela globalização e, desde então, outras modalidades de poder foram tecidas para os agenciamentos das subjetividades. A soberania se fundava na figura do pai. Se essa figura tinha já sido atingida na sua potencialidade simbólica com advento da modernidade, seja pela metáfora da morte (Nietzsche) seja pela do assassinato (Freud), ela pairava ainda como uma sombra, contudo, que era permanentemente evocada nos registros da singularidade e da coletividade. Com efeito, o super-eu, como instância psíquica da lei da culpa, regulava o primeiro registro, enquanto que o Estado-Nação mediava o segundo. Se os masoquismos e as perversões foram derivações nefastas desta soberania nas singularidades, os totalitarismos indicavam a presença daquela no imaginário coletivo. A globalização, no entanto, lançou tudo isso por terra, confrontando-nos radicalmente com a experiência do desolamento. Essa, diferentemente do desamparo, não inscreve o sujeito no campo da alteridade. Com isso, as intensidades psíquicas se impuseram cada vez mais, desnorteando traumaticamente as subjetividades, carentes de operadores alteritários capazes de transformá-las. As diferentes formas de compulsão - drogas, alimentos, trabalho, consumo, remédios etc. - se impuseram como reguladoras das intensidades, procurando dar alento às errâncias subjetivas. Isso porque o fantasma da morte se materializava pelas perturbações corporais cada vez mais presentes, indicando radicalmente o limite para qualquer performance. O espetáculo se faz então impossível, de forma que é preciso que a subjetividade se restaure compulsivamente, para que responda à performance esperada. Na sociedade do espetáculo os talentos do futebol são consumidos com o mesmo ímpeto em que são produzidos. A destruição atinge então níveis assustadores, com ou sem uso de drogas. Este é o caso exemplar de Ronaldinho, que, transformado em ''fenômeno'', pela máquina mediática, não suportou o gozo imagético colocado sobre as suas pernas e claudicou também no seu futebol. ---------------------------------------------------------------- Joel Birman é psicanalista e autor de Mal-estar na atualidade (Civilização Brasileira) *** Felipão e a grande família dos déspotas [] ADAUTO NOVAES Pensadores da cultura costumam definir o modo de vida contemporâneo como uma criação imaginária. Entendem por imaginário não a ficção ou a ilusão, mas a posição de novas formas sem origem propriamente racional: porque antecipa e prevê, a imaginação, escreve o ensaísta Jean Starobinski, desenha diante de nós a configuração do realizável antes mesmo que ele seja realizado. Estas novas formas criam valores que tendem a orientar a vida social e política tanto individual como coletiva. Elas podem, portanto, ser fonte de invenção de novos direitos – poder instituinte permanente que define a verdadeira democracia – dos quais a origem da lei e dos valores é a própria sociedade; mas estas novas formas, frutos de construção imaginária, podem também produzir idéias extra-sociais: nesse caso, a produção é externa à sociedade. Mais precisamente, elas são inventadas por instâncias que manipulam sentimentos e paixões. Aqui, a consciência imaginante distancia-se da realidade para se tornar jogo, espetáculo e erro mais ou menos voluntários. Só assim podemos compreender o que acontece hoje, dias de Copa do Mundo, com a reposição de termos e idéias que a política julgava já superada pela história. A isso pode-se dar o nome de ideologia, consciência deformada da realidade, que consiste em atribuir "vida àquilo que está morto, movendo-se em si mesmo". A invenção da "Família Scolari" é um destes convites ao erro voluntário, à perda de qualquer referência racional e à retomada da velha – e morta? – idéia do déspota, figura da sociedade e da política gregas que quer dizer, literalmente, o chefe da família. Ora, quais são as implicações políticas dessa idéia? Sabe-se que a principal característica do déspota é ser o autor único e exclusivo das regras que definem o espaço privado. As coisas se complicam quando os meios modernos de comunicação embaralham espaço privado e espaço público, privatizam o público e tornam público o que édomínio do privado. O déspota só domina os que dependem diretamente dele (por isso ele é o pai da família). Lemos, por exemplo, em um dos ensaios do livro Ética : ''A marca do despotismo - vontade arbitrária do governante, medo dos governados, apropriação privada do que é comum ou público - expressa-se na linguagem antiga pelas imagens da desmedida do governante movido pelas paixões e vícios e pela ausência de leis positivas e objetivas que limitem o arbítrio da sua vontade'' (Marilena Chaui). É certo que Scolari contribui, e muito, para criar esta imagem. Admirador declarado do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, o ''general Felipão'', como é chamado pelos jornais, proíbe aos jogadores, como um pai repressor, o telefone, a internet, o sexo e as visitas, movido apenas pela sua vontade. Privatiza relações quando, por exemplo, esclarece as razões pelas quais não convocou um jogador: ''Quando eu te convido para ir à minha casa (mais uma vez recorre ao espaço privado, à família), é sinal de que eu tenho confiança. Quando eu convoco pela primeira vez a seleção, levo para jogar contra o Uruguai e dou a tarja de capitão, é porque tenho confiança. Aí, preciso de referência na Copa América e não tenho. Preciso de força para eu ficar até mais forte em termos de seleção, porque eu estou chegando, e não sou atendido. E vejo que depois viaja com o clube (Vasco) e quando nós estamos em competição, ainda tem um passeio em Cancún. Sinal de que ele não está preocupado com a seleção nem comigo.'' Não são, portanto, razões técnicas ou a competência do jogador que determinam, mas o ressentimento, uma das piores paixões. Mas não é só o técnico da Seleção Brasileira que usa a imagem do pai de família. Uma das funções da ideologia consiste em unificar o que é cindido pela própria organização social e política: podemos ver, a cada noite, como instrumento de unificação, a rubrica Família Scolari no horário mais nobre da televisão brasileira, aquele que pretende concentrar todo o olhar e toda a consciência do brasileiro, o Jornal Nacional. Na sociedade de massas nada é pensado de forma inocente e as implicações políticas são claras. Já virou lugar-comum a utilização do esporte para fins políticos: já foi ''Pra frente Brasil'' na época da ditadura militar e hoje é a família como forma de identidade nacional. Ora, nada mais antidemocrático, uma vez que o poder do pai é arbitrário, como escreve Aristóteles na Política, e consiste em domesticar (mais uma vez a casa, do latim domus) o que, por essência, jamais pode ser domesticado ou domesticável. É assim que escreve o filósofo Claude Lefort, uma das grandes expressões do pensamento político na crítica dos totalitarismos: ''que seja dito que a proteção das liberdades individuais não é a única em causa, mas também a natureza da relação social; e que se diga também que onde a sensibilidade ao direito se difunde, a democracia é necessariamente selvagem e não domesticada''. Por selvagem, Lefort entende que a democracia, por essência, não pode ser apresentada como pronta e acabada no espaço e no tempo. Ela está, constantemente, em busca de seus fundamentos e da sua legitimidade, através da invenção permanente de direitos. E isso é tarefa da sociedade, e não do pai de família. ---------------------------------------------------------------- Adauto Novaes é ensaísta, e professor de Filosofia e organizador de Ética (Companhia das Letras) *** ''Só o amor dos torcedores explica o sucesso do futebol no Brasil'' Entrevista/JOSÉ ROBERTO TORERO [] Aydano André Motta Como bom e qualquer cachorro, Marcos Roberto sabe a melhor coisa dessa vida é estar perto de quem se ama. E ele tem, por assim dizer, faro para procurar no lugar certo. Quatro anos atrás, foi à França e, no meio de uma multidão de amigos, celebrou as companhias na sua língua particular - ''Futebol é bom pra cachorro!'' Marcos Roberto é o alter-ego do paulista José Roberto Torero, o festejado autor de Chalaça , que agora lança, com Marcus Aurélius Pimenta, Futebol é bom pra cachorro! (Panda Books). Os dois escritores contam a saga brasileira nas 16 Copas do Mundo a partir de uma seleção peculiar de personagens - um podólogo, um padre, um azarado conceitual, um anão, uma ex-freira, um adolescente fixado em sexo e um falso vidente estão entre eles, que, claro, são 11. Torero e Pimenta misturam as trapalhadas do grupo da ficção à realidade brasileira através dos Mundiais, do início amador e romântico em 1930, ao fracasso ultraprofissional em 1998. Fanático torcedor do Santos - está escrevendo um dicionário sobre o clube, para a coleção Camisa 13 -, ele analisa, nesta entrevista ao Jornal do Brasil a febre esportivo-literária, aponta seus personagens favoritos e especula como será o amanhã do Brasil na aventura pelo pentacampeonato. - O futebol, com seus dramas e êxtases, é um bom cenário para a literatura? É seu tema predileto? - É um bom cenário e tem ingredientes interessantes, como vitórias, derrotas, dinheiro, mulheres, possíveis bons personagens secundários e chances de ótimas metáforas em relação ao Brasil. Mas não chega a ser meu tema predileto. Amor, poder e morte ainda são mais interessantes. - Quem, no Brasil, melhor escreveu sobre futebol? - Nelson Rodrigues. Pelo talento literário, pela extensão da obra, pela paixão com que via o jogo e pelos raciocínios originais. Além disso, ele não falava só de futebol, mas se utilizava do tema para falar de psicologia e sociologia, de história e filosofia, do Brasil e dos brasileiros. - Qual é o seu livro predileto sobre o assunto? Por quê? - À sombra das chuteiras imortais . Porque é a melhor seleção de nosso melhor cronista. - Por que existem tão poucos livros de futebol no Brasil? - Já ouvi várias explicações. A mais comum é a que culpa o abismo entre a elite intelectual e o futebol. Acho que há uma certa razão nisto, mas gosto mais da explicação que diz que o futebol já é uma narrativa em si, como literatura ou cinema, e assim não precisa ser traduzido em outra linguagem, em outra forma de narrativa. - Qual é o personagem mais parecido com você em Futebol é bom pra cachorro! ? - O cachorro (Marcos Roberto, o personagem-título). - Os lançamentos ligados à Copa do Mundo podem criar um leitor cativo de literatura esportiva? - Podem. O oba-oba feito em torno do futebol e da literatura futebolística deve ajudar a criar alguns aficionados. Eu mesmo passei a gostar mais de futebol na Copa de 78, quando li muito sobre o assunto (e enchi um álbum de figurinhas). - Se a história do futebol brasileiro coubesse num único livro, qual seria o capítulo mais importante? E o que estaria na capa? - Acho que o mais importante seria o torcedor, a história de uma paixão. A capa poderia ser a foto de alguém na geral do Maracanã com a camisa do Flamengo. É que o sucesso do futebol no Brasil só se explica pelo amor que os brasileiros têm por ele. Por isso (e apesar dos dirigentes) é que temos mais e melhores jogadores. - Qual o personagem mais literário do nosso futebol? - Há vários. Garrincha é excelente, Pelé é ótimo, Heleno de Freitas é soberbo. Mas acho que os personagens mais comuns geralmente rendem histórias melhores. Se eu fosse escrever um livro, provavelmente escolheria um zagueiro reserva de um time da segunda divisão. - O que é mais apaixonante para você? O clube (o Santos, no seu caso) ou a Seleção? - É um páreo duro, mas acho que o Santos ganha quase sempre, menos em ano de Copa. - O futebol de hoje, excessivamente profissionalizado, e com os principais ídolos jogando na Europa, consegue ainda criar torcedores apaixonados? - Ainda. Mas são torcedores apaixonados pelos times, raramente pelos jogadores. - Sua paixão por futebol continua intensa como antes, apesar dos pesares de hoje (violência, cartolas, corrupção, calendário etc.)? - Não. Hoje é um pouco menor. É mais ou menos como se crescessem barba e bigode na mulher amada. Ela ainda é essencialmente a mesma, mas há alguns defeitos muito visíveis que incomodam. - Se você tivesse de escolher um jogador para biografar, quem seria o seu eleito? - Coutinho, o parceiro de Pelé. É melhor olhar para a sombra que para o sol, para o coadjuvante que para o principal. - O que você acha da Seleção do Felipão? Falta alguém? - Acho que sobra um zagueiro e falta um meia. O nome já diz: meia. Precisamos de dois para fazer uma seleção inteira. - O Brasil vai ganhar a Copa? - É difícil. Como todo mundo diz, a seleção tem bons jogadores, mas falta conjunto. É como uma banda mal-ensaiada: pode até fazer belas apresentações, mas vai depender muito da inspiração dos músicos... Ou, no caso, dos jogadores. *** As letras do maior esporte nacional Para escritor, com raras exceções, a literatura nunca deu a devida importância à relação entre jogadores e torcedores [] Deonísio da Silva O futebol está para a literatura brasileira assim como o camelo para o Alcorão . Ninguém nega a importância de cada um dos temas nos respectivos domínios, mas se não encontramos o camelo em nenhuma das suratas (as divisões do Alcorão ), também o futebol tem sido evitado por nossos poetas e prosadores. Isto é, até o presente quem se aventurou escreveu bem. Por escrever bem, entendamos mais o estilo do que o conteúdo, ainda que tal separação seja complicada, porque a forma influencia o conteúdo e vice-versa, mas escrever é fingir e no mentiroso admiramos mais o seu modo de narrar do que o narrado. Vamos a uns poucos exemplos. Graciliano Ramos deu o pontapé inicial. Escreveu um texto lindo, triste e pessimista, prevendo que o futebol, como do cinema disseram os Irmãos Lumière, seria uma invenção sem futuro entre nós. O ofício de prever impõe alguns tributos aos profetas, sendo o mais devastador o erro puro e simples. Os fatos desmentiram nosso grande ficcionista. Décadas depois, Edilberto Coutinho arrebatou o prestigioso Prêmio Casa de Las Américas com Maracanã, adeus, em que futebol, jogadores e domínios conexos compõem os cenários dos contos. Ignácio de Loyola Brandão escreveu um premiado conto sobre o boxe, Pega ele, silêncio .Mas seu livro É gol somente saiu da gaveta para atender a um pedido especial. Rubem Fonseca, em Feliz ano novo , o livro que a ditadura militar mais abominou porque foi obrigada a mostrar como funcionavam as proibições e a censura, apresenta-nos uma história de amor repleta de compaixão, intitulada ''Abril, no Rio, em 1970''. Zezinho namora Nely, que não é de jogar fora, mas sonha com a ascensão social pelo futebol: ''eu tinha que comer a bola no domingo, do Madureira para a seleção, bola com Zezinho, é goool! A multidão gritava dentro de minha cabeça''. No campo, derrota anunciada é combatida assim pelo personagem: “vamos virar esse placar, pessoal, eu disse para os companheiros, botando a bola debaixo do braço e correndo para o meio do campo, pra dar a saída, igual o Didi na final da copa de sessenta e dois”. O vascaíno Rubem Fonseca enganou-se. gesto de Didi ocorrera na final da copa de 58, quando a Suécia fez 1 x 0 diante de atônitos brasileiros que então reagiram. Em 1998, a França fez três e ninguém reagiu, talvez porque não houvesse nenhum Didi em campo. Carlos Drummond de Andrade dedicou vários poemas e crônicas ao futebol, provavelmente porque sua sensibilidade poética e perspicácia tenham sido fertilizadas pela atuação constante na imprensa. João Cabral de Melo Neto fez uma verdadeira ode a Ademir da Guia, enaltecendo justamente seu estilo. Também Affonso Romano de Sant´Anna escreveu vários poemas e crônicas sobre futebol e é autor de uma façanha até agora insuperável. Na Copa de 1986, terminada cada partida do Brasil, escolhia um lance e fazia sobre ele um poema às pressas, declamado no mesmo dia na televisão. No romance, quem mais ousou foi o fluminense Ewelson Soares Pinto com A crônica do valente Parintins , em que as tramas passam pela Era Vargas, pela Segunda Guerra Mundial, mas os cenários mais fascinantes estão em peladas e jogos memoráveis. Contudo, entre esses poucos exemplos, que tiveram principalmente o mérito de evitar o alheamento a tema tão apaixonante, nenhum poeta, contista ou romancista deu ao futebol a transcendência que lhe conferiram os irmãos Mário Rodrigues e Nelson Rodrigues, embora seja mais conhecido o segundo, autor dessas frases memoráveis: “qualquer técnico tem a torva e atra vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e varizes; quem ganha e perde as partidas é a alma; a arbitragem normal e honesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável”. O Alcorão omite o camelo, mas inclui a vaca, as formigas, a aranha, o elefante, o cavalo. Os escritores brasileiros, em sua maioria, têm evitado o futebol. Tal lacuna não empobrece nossas letras, mas nos desconcerta e sugere certas sobrenaturalidades nessa falta. Será que o vôlei, o basquete, o beisebol, o tênis e o xadrez não oferecem as mesmas assimetrias para quem escreve? Talvez seja porque o esporte, à semelhança da guerra e do amor, seja tão grandioso que é simplesmente impossível aumentá-lo. Com efeito, autor vem do latim auctor, o que aumenta, faz crescer. Na Roma Antiga, antes de designar quem escrevia, indicou os generais conquistadores. ---------------------------------------------------------------- Deonísio da Silva é escritor *** A viagem do futebol através da história Geógrafo explica como esporte ligado à pedagogia das fábricas se espalhou pelo mundo e fez do Brasil celeiro de craques [] Gilmar Mascarenhas Definitivamente, um jogo se tornou nada menos que o mais duradouro, disseminado e bem-sucedido produto de exportação da grande potência mundial do século 19. Na ultrapoderosa Inglaterra de então, a criança escolheu lugar e momento certos para nascer, espalhando-se oportuna pelos parques vitorianos e fecundando toda uma nascente cultura operária, à qual serviu como eficiente ''pedagogia da fábrica'': trabalho em equipe, obediência às regras, especialização nas tarefas, submissão ao cronômetro etc. Para além das Ilhas Britânicas e a serviço destas, milhares de homens singravam os oceanos, disputando peladas pelos portos do mundo. Enquanto alimentavam com suor e sofrimento os circuitos imperialistas, semeavam com suor e prazer a vigorosa semente do futebol. Neste jogo encontramos o poder mágico do acaso (o tão citado ''mar de imponderabilidades''), derivado sobretudo da peculiar proibição de se controlar a bola com as mãos; a simplicidade das regras (a única de complicada execução, o impedimento, é sumariamente abolida no futebol informal); e a fácil assimilação e improvisação: pés descalços, bolas de meia, pedras demarcando balizas (lembremos que outras modalidades de esporte coletivo dependem de equipamentos especiais: basquete e voleibol demandam objetos que quicam, além de cestas ou linhas suspensas no ar; beisebol e críquete requerem bastões etc.). Todavia, se é verdade que o association football possui notórios ingredientes sedutores, sua difusão e incontestável êxito planetário também se devem a fatores externos ao jogo em si: o futebol encontrou impulso e abrigo nos diversos movimentos nacionalistas então em voga, na constante expansão do mundo fabril e na própria urbanização, que privou grandes contingentes populacionais do vasto leque de opções lúdicas do campo. Gente pobre que preenchia seus tempos e carências divertindo-se no anonimato dos terrenos baldios com um jogo simples e totalmente gratuito em sua fácil improvisação. Em síntese, o êxito do processo de difusão depende mais da procedência territorial da inovação do que de suas supostas vantagens intrínsecas. Trata-se de um fluxo planetário no sentido centro-periferia, o que nos leva à geografia. Ela mesma nos convida a refletir sobre a curiosa distribuição espacial dos esportes pelo mundo, e quiçá a desmontar algumas velhas certezas, conforme veremos a seguir. Como, por exemplo, descobrir que o Flamengo poderia facilmente não ter virado o clube de maior torcida no país, ou mesmo que o futebol poderia não ser o nosso esporte predileto, ou ainda, que nossa condição de potência mundial parece estar hoje com seus dias contados... Contando com imenso volume de investimentos britânicos, os Estados Unidos certamente figuram entre os primeiros países do Novo Mundo a tomar contato com o esporte que os ingleses codificaram em 1863 (em 1867 surge o Harrow School Team, provavelmente o mais antigo clube de futebol criado fora da Grã-Bretanha). Entretanto, naquele mesmo período, o beisebol se popularizava velozmente nos EUA, e não por acaso: sendo uma invenção norte-americana (embora herdeiro do críquete inglês em variados aspectos), tornou-se o símbolo esportivo na crucial campanha pela afirmação da cultura nacional. Eram por isso gravemente acusados de antiamericanismo os imigrantes (italianos, em maioria) que insistiam em praticar o soccer . Uma vez consolidado como esporte nacional, e apoiado na expansão imperialista norte-americana, o beisebol conquistou o Caribe e parte da América Central. Atingiu inclusive a Venezuela, que ainda hoje permanece como uma exceção no futebolístico continente sul-americano, persistindo com estádios vazios e pleno desinteresse pela Copa, a despeito dos milionários subsídios em dólares que a Fifa ali aporta. Caberia pois levantar uma hipótese retumbante: no Brasil, a transição da hegemonia inglesa para a norte-americana se concretiza no contexto posterior à Primeira Guerra Mundial, quando o futebol (felizmente!) já estava praticamente consolidado entre nós. Caso os EUA se antecipassem em duas ou três décadas naquele avanço implacável sobre seu futuro ''quintal'', provavelmente estaríamos agora dedicando os estudos e as paixões, corações e mentes, para aquele jogo que (argh!) fascina nossos vizinhos caribenhos, a ponto de incluir Cuba apesar de toda sua rebeldia aos ianques. Em síntese, a dinâmica das forças imperialistas sobre o território certamente nos ajuda a entender a razão pela qual, na mente da grande maioria dos brasileiros, a primeira imagem suscitada ao se ouvir o Hino Nacional é a da seleção (de futebol e não de beisebol) postada solenemente no gramado, diante de mais um confronto internacional, a colocar em jogo o valor da ''raça'' e a honra da nação. Pensemos agora no Flamengo e em sua incontestável primazia entre os torcedores de todo o Brasil. Apoiado na campanha muito bem promovida por Mário Filho, podemos entender como esse clube de origem elitista se revestiu de ''carnavalesca brasilidade'' para superar, na preferência dos cariocas, o popular e suburbano (porém lusitano, um ''pecado'' no contexto da afirmação da nacionalidade mestiça dos anos 1930) Vasco da Gama. Sem dúvida uma façanha excepcional, mas como explicar a supremacia no plano nacional, conquistada também naquele período? Esta, acredito, nos remete a uma outra ordem de acontecimentos, sobretudo à dinâmica do território brasileiro, que então iniciava sua efetiva integração. Sendo o Rio de Janeiro a capital econômica, política e cultural, sede das emissoras de rádio de amplo alcance territorial, seria indubitavelmente de um clube carioca o privilégio da primazia nacional. Caso o processo de integração do território brasileiro se antecipasse em pelo menos duas décadas, tal privilégio seria disputado entre o Botafogo (o enaltecido ''glorioso'' de 1910) e o tradicional Fluminense, que lideravam absolutamente o cenário futebolístico local até 1912, quando surgia o Flamengo. Caso tal processo ocorresse duas décadas mais tarde, possivelmente encontraria no Vasco, base da talentosa seleção de 1950, seu candidato mais forte. E se a integração enfim se manifestasse a partir de 1960, quando a metrópole São Paulo despontava na liderança, provavelmente teria sido um clube paulistano (!!!) a conquistar a preferência nacional. Até mesmo a reconhecida performance do futebol brasileiro se apóia em elementos de nossa geografia. Um gigante dedicado à monocultura do futebol tem obrigação de se destacar no cenário internacional, da mesma forma que os norte-americanos dominam o basquete. Afinal, que outro país mobiliza diariamente dezenas de milhões de crianças e jovens alucinados em torno da bola? Por isso temos, desde 1940, a maior base de recrutamento de talentos futebolísticos do mundo (cuidado: trata-se de uma pirâmide etária cuja base sofre irreversível processo de redução, e a China vem aí...). Portanto, não é verdade que o brasileiro seja naturalmente ''bom de bola'': nossa qualidade advém sobretudo da quantidade. Imaginem se a Argentina tivesse nosso porte demográfico-territorial? O assunto é delicado, mas, com uma população cinco vezes maior, será que produzimos craques na mesma proporção de nossos rivais? E o que dizer do futebol africano, caso não estivesse o continente há duas décadas mergulhado no abandono e no caos sem precedentes? Imperialismo, cidades, migrações, nacionalismo, futebol e políticas territoriais. Pensar é bom, mas às vezes é melhor apenas torcer. Em tempos de Copa, torço, logo existo. ---------------------------------------------------------------- Gilmar Mascarenhas é doutor em Geografia pela Usp, professor da Uerj, integrante do grupo de pesquisa Esporte e Cultura do CNPq e falará sobre futebol no seminário Belle Époque tropical , no CCBB, no dia 25 *** O mundo da bola e das letras Copa provoca enxurrada de lançamentos contando as apaixonantes histórias do futebol brasileiro [] Aydano André Motta Nada é mais marcante, na alma dos brasileiros, do que a paixão pelo futebol; não há povo sobre a Terra que ame mais este jogo do que nós; todo garoto nascido aqui só tem a profissão dos seus sonhos quando consegue ser jogador de futebol. O resto se conforma com o destino - e vai jogar pelada, toda semana, até o dia em que não puder mais ficar de pé. A saga dos nativos da terra do futebol é assim - carrega drama e êxtase em doses cavalares, esculpe heróis, desenha mártires e cristaliza vilões a cada capítulo de sua história secular. Até hoje, no entanto, a literatura apresentava desempenho de perna-de-pau para descrever as aventuras brasileiras atrás da bola. ''Nossa literatura ignora o futebol, e repito: nossos escritores não sabem cobrar um reles lateral'', ralhava, ainda nos anos 70, Nelson Rodrigues, uma das poucas exceções. Como decretava um antigo e genial locutor de rádio, fim de papo. Mesmo antes de começar, na próxima sexta-feira, a gangorra de euforia e sofrimento chamada Copa do Mundo garantiu um prazer farto à torcida nacional. Nunca o mercado editorial foi tão pródigo com o futebol - pelo menos 15 livros foram lançados na temporada pré-Mundial, reunindo um dream-team de autores. Coisa de campeão. São craques do passado (João Saldanha, Carlos Drummond de Andrade) e do presente (Aquino, Nelson Motta, José Roberto Torero), pesquisadores (Celso Unzelte, Roberto Assaf, Ivan Maurício, Mário de Moraes) e até revelações importadas diretamente dos campos, como o ex-juiz e hoje comentarista Arnaldo Cezar Coelho e até Pelé, em rápida participação. A melhor abertura da temporada literário-esportiva é 90 minutos de sabedoria , compêndio de aforismos reunidos caprichosamente pelo pernambucano Ivan Maurício. Nele, o jogo motiva românticos como Paulo Mendes Campos (''Cumpri o dever e não driblei o meu destino. Meu destino era amar o futebol. Amei-o''), impagáveis como Casagrande (''Sexo não faz mal nem antes nem depois do jogo. Só durante''), profundos como Falcão (''O jogador de futebol é uma pessoa que morre duas vezes'') e, sobretudo, brasileiros como Mário Filho (''É mais difícil deixar de amar um clube do que uma mulher''). O conjunto de obras sobre a farta história real do futebol tetracampeão - aí incluídos os capítulos que parecem saídos da mais improvável ficção - privilegia dois momentos literariamente obrigatórios: o tri redentor em 1970 e a cruel derrota em 1982. (Não por acaso, o tetra conquistado na pagã disputa de pênaltis pós-zero a zero, em 1994, está confinado ao papel de coadjuvante.) A desilusão na Espanha é exumada em O trauma da bola , reunião de crônicas de João Saldanha (Cosac & Naify), publicadas no Jornal do Brasil durante o Mundial, e na melhor parte de Quando é dia de futebol (Record), que junta poesias e prosas de Drummond - algumas, também do JB . Reler as reflexões do cronista e do poeta sobre o épico de 20 anos atrás desemboca em amargura - como o futebol, mesmo pós-videoteipe, já foi melhor! Ainda que Saldanha, o melhor cronista esportivo do jornalismo brasileiro, jamais tenha perdido o senso crítico na análise de uma Seleção cantada com excessivo ufanismo pelas vitórias no início da competição. O único vencedor brasileiro na tragédia (quem gosta de bom futebol não pode deixar por menos) conta sua história em A regra é clara , da Editora Globo. Ex-juiz e hoje comentarista, Arnaldo Cezar Coelho mistura uma didática explicação das regras do jogo - um achado para os leigos que vão acentuar o sofrimento dos iniciados com dúvidas sobre o impedimento, o tiro livre indireto etc. - a histórias vividas no campos. A principal delas, diretamente ligada à eliminação do Brasil em 1982, é sua participação como juiz da final, entre Alemanha e Itália. Arnaldo revela os problemas que teve com Stielike, o líbero alemão, e o jeitinho completamente brasileiro que adotou para administrar o conflito. ''Aquele era o jogo da minha vida e haveria Stielike que fosse estragá-lo'', escreve o ex-juiz. A Copa que terminou no apito de Arnaldo, perdida pela melhor Seleção formada no Brasil desde os anos dourados, bate até a mais amada das vitórias, no México em 1970. Organizado por Alex Medeiros, Memórias do Tri - todos juntos, vamos reúne crônicas de 30 escritores, jornalistas e publicitários, relembrando onde estavam na conquista que garantiu a posse da Taça Jules Rimet - até ela ser roubada e possivelmente derretida, 13 anos depois, numa história de bandido que merece o esquecimento. Porque o futebol, freqüentemente, parece mentira. O time dos arqueólogos da bola, de seu lado, garante que é tudo verdade. Os pesquisadores, essa gente que adora remexer os jogos do passado remoto e recente, aparecem em lançamentos como Banho de bola , sobre a evolução tática do jogo; e, o mais luxuoso deles, O livro de ouro do futebol , trabalho de fôlego de Celso Unzelte, desde já candidato a bíblia da cultura inútil esportiva. Estão lá, entre outros, o Trem do Amapá, maior campeão do ex-território; a história do futebol de botão; e uma relação de 50 craques - ''os maiores do futebol em todos os tempos'' -, que, como qualquer outra, vai garantir a conversa durante o chope. E a odisséia que todo brasileiro carrega marcada na alma vai continuar. Semana que vem, começa a 17ª Copa do Mundo, garantia de risos e lamentos, abraços e lágrimas. Além de muito mais literatura para saciar a nós, apaixonados eternos por esta história sem fim. *** Nesta Seleção está faltando ele Crítico Literário sugere escalar Sérgio Buarque de Hollanda e Raymundo Faoro para explicar a ausência de Romário [] João Cezar de Castro Rocha Autor de frases memoráveis, Nelson Rodrigues propôs a formulação definitiva: ''a Seleção é a pátria de chuteiras''. Por isso, acordaremos num horário improvável para assistir aos jogos da Copa e muitos já aceitam como acertada a exclusão do maior atacante do mundo. Alguns chegam ao ponto de sequer pronunciar seu nome: vale tudo para a conquista do pentacampeonato. Afinal, as divergências mais duras não são relevadas durante as partidas? Nos anos de chumbo, os guerrilheiros no exílio celebraram a conquista do tricampeonato, embora denunciassem o uso político da Copa do Mundo pela ditadura militar. Entretanto, Nelson Rodrigues talvez tenha sido mais malicioso. Não estaria sugerindo que o escrete canarinho encena um inesperado teatro em campo? Os jogadores seriam atores que trazem à cena tanto o Brasil que podemos ser quanto aquele que desejamos esquecer. De um lado, a irreverência e a eficácia do maior atacante do mundo. De outro, a família Scolari e Ricardo Teixeira. E já que toda unanimidade é burra, convoquemos um ataque imbatível, até mesmo porque imaginário: Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e o gênio da pequena área. Na época da CPI do Futebol, que terminou num melancólico zero a zero, argumentava Ricardo Teixeira: não se pode julgar a CBF, entidade privada, como se fosse uma instituição pública. Porém, na hora de assinar milionários contratos de publicidade, o produto que oferece é a imagem da Seleção Brasileira, ou seja, da pátria de chuteiras. Infelizmente, Felipão e Ricardo Teixeira tabelam com o pior de nossa formação: o autoritarismo e a confusão entre as esferas pública e privada. Em Raízes do Brasil (1936), Sérgio Buarque diagnosticou a enfermidade da ''família Scolari''. Ela é um sintoma bem cotidiano da sobrevivência do homem cordial, definido pelo primado das relações pessoais, que transforma a condução dos interesses (em princípio) públicos numa rede de favorecimento dos amigos. Em Os donos do poder ( 1956), Faoro denunciou a estrutura de organizações como a CBF: é o patrimonialismo, que administra os bens públicos como se fossem propriedades individuais. À sombra do patrimonialismo, a estrutura administrativa do Estado funciona como se pertencesse aos donos do poder. Eles controlam os cargos, distribuindo-os a fim de cooptar os eventuais dissidentes ou preservar os inúmeros aliados. Na verdade, a ausência do maior atacante do mundo representa uma escolha que transcende as quatro linhas. Rebelde às regras anacrônicas e hipócritas da ''família Scolari'', o gênio da pequena área não tinha como trocar passes com a concepção autoritária do técnico da CBF. Estamos, porém, às vésperas da Copa. Vamos portanto torcer juntos pela pátria de chuteiras. Mas, enquanto sofremos sonolentos diante da tevê, podemos imaginar um time que não precisaria de técnicos ou dirigentes. Nesse time, todos os caminhos levariam a Romário. ---------------------------------------------------------------- João Cézar de Castro Rocha é coordenador geral da Pós-graduação em Letras da Uerj *** Dissecando o esporte das massas Socióloga comenta pesquisa de especialista europeu sobre futebol [] Daizy Stepansky Sociologia do Futebol Richard Giulianotti Nova Alexandria, 263 páginas Sem preço definido A pesquisa sobre futebol deve ser imaginada e armada como uma situação de jogo, aconselha Giulianotti. O pesquisador deve ser um técnico, que organize seus interesses metodológicos e analíticos para a formação de uma equipe que saiba se defender dos ataques adversários, e fazer gols, entrando no coração da cultura do futebol. Pessoalmente, ele diz preferir o esquema tático criado por paraguaios e celebrizado por brasileiros: 4-2-4. Esquema imbatível, garante, quando na defesa o sociólogo-técnico coloca os clássicos: idade, classe, gênero e etnia. Para o meio-de-campo, a identidade cultural do futebol, e no ataque, seus aspectos épicos, sublimes, desviantes, e a estética do futebol. As referências de Giulianotti - dezenas de publicações e títulos em respeitáveis veículos europeus - o referendam como um veterano com muitas copas acadêmicas conquistadas. O estudo da expansão do futebol e de sua penetração nas sociedades e culturas européias ao longo do século 20 funciona como um importante indicador das características e das mudanças sociais, culturais e econômicas em fases que o autor caracteriza como tradicional, moderna e pós-moderna. Giulianotti identifica e analisa as interações entre as táticas e os heróis com o contexto do futebol: dos nacionalismos ao futebol globalizado e financiado pelo grande capital internacional. Busca também apreender manifestações mais universais da paixão pelo futebol em outros continentes mas, embora seu esquema teórico seja consistente e faça ''muitos gols'' nos campos de latitude norte, seu olhar é demasiado europeu para os cenários latino-americanos e africanos. E, como ele sabe, apesar de oferecer espaço a talentos individuais, o futebol é extremamente permeável ao seu entorno cultural. Na análise dos torcedores e da violência no futebol, o autor menciona as torcidas latino-americanas, a forma carnavalesca do Norte da Europa, mas enfoca especificamente o hooliganism no futebol do Reino Unido, a partir dos anos 60. A pesquisa interdisciplinar sobre grupos de torcedores violentos e de espectadores não-violentos se afirma a partir dos anos 80 e se insere em estudos mais amplos sobre marginalidade, exclusão e integração nas sociedades de mercado. Giulianotti critica inúmeros estudos que se ocuparam da violência e do surgimento de novos movimentos políticos de torcedores, como as análises marxistas de Ian Taylor, que associam a violência a uma ''nova criminologia'' e afirmam que mudanças estruturais alteraram a identidade social dos torcedores, afastando os tradicionais e atraindo novos espectadores. Estes ''consumidores de lazer'' são contemporâneos do processo de espetacularização do futebol, profissionalização e internacionalização dos jogadores e dos clubes. Os segmentos tradicionais, marginalizados, alimentariam também os movimentos políticos fascistas. As pesquisas empíricas do psicólogo social Peter Marsh, acrescentaram elementos novos às análises da violência, associando-a à agressividade humana e despindo-a de seus elementos históricos e culturais. A noção de figurações sociais e o conceito de processo civilizatório de Norbert Elias - e sua inversão, as ''explosões descivilizadoras'' - fundamentaram os estudos da Leicester School, centro de referência de estudos da violência no futebol. A questão metodológica, crucial nos demais estudos, foi mais bem tratada, segundo Giulianotti, por um grupo de estudiosos de Oxford, que conseguiu entrar em um grupo de hooligans para realizar a pesqui sa. O que surpreendeu nos estudos destes grupos? A banalidade de seu estilo de vida, sua integração à sociedade - e não sua marginalidade, além de sua especificidade como consumidores. A violência no futebol inglês, afirma Giulianotti, sabendo que vai surpreender seus leitores, tem sua própria forma estética e se insere numa categoria de lazer de risco, como os demais esportes radicais. O futebol pós-moderno poderá ser disputado em estádios vazios, transmitido pela televisão. Equipamentos eletrônicos poderão oferecer simulacros de interatividade. Por razões de mercado, os estádios poderão se distanciar de suas bases. Os espaços de futebol se originaram em interação real com as torcidas e com os aglomerados urbanos. Na Inglaterra, os campos de futebol, na fase anterior à regulamentação, eram demarcados por obstáculos naturais, como rios ou valas. Grande parte dos espaços de futebol antecede a Primeira Guerra, muitos se localizavam próximos às fábricas e aos terminais de transporte coletivo, e suas construções já reproduziam a estrutura de classes na acomodação dos torcedores. A moderna forma elíptica amplia os ângulos de visão do gramado e facilita a vigilância dos torcedores. A modernização dos estádios de futebol, que é paralela ao aumento da exploração comercial dos estádios e das imagens associadas aos times, também favorece a adoção de medidas de segurança e de prevenção de acidentes decorrentes de grandes aglomerações. Sobre a segurança - ou a falta de segurança - nos campos de futebol dos países da periferia, onde ocorrem os maiores desastres, Giulianotti afirma que eles são devidos mais freqüentemente às tentativas desastradas de ação da polícia que à violência das torcidas. Neste caso, afirma, o Estado funcionaria como uma forma de crime organizado, cobrando impostos em nome da proteção, e oferecendo violência. Em um capítulo específico, Giulianotti analisa a situação profissional dos jogadores e de seu deslocamento de heróis locais a estrelas internacionais. Em todos os capítulos, como torcedor apaixonado, narra grandes feitos de heróis e fala de artistas que se imortalizaram com obras inesquecíveis. Não envelhecem. Não morrem. Não podem ser humanizados, porque são quase deuses quando jogam. Esta Sociologia do futebol cerca-se de bons recursos metodológicos e de rigor científico. Mas a descrição de uma partida entre Flamengo e Vasco no Maracanã trai o autor: ''O jogo começa enquanto o Maracanã permanece em semi-eclipse, sua grandeza se divide entre o dia e a noite, entre o sol e a sombra. O próprio jogo é um hino à graça e honra divina, oscilando entre um ritmo lento e veloz, entre a perambulação e o passo rápido, acompanhando o compasso dos tambores das torcidas. Toques de gênio por semideuses atléticos são saudados como atos de revelação por uma multidão de mortais no alto das arquibancadas. Os gols são momentos de êxtase do público.(...) Não há nada na Europa que se compare a esta experiência quase religiosa.'' Paixão também é indispensável. ---------------------------------------------------------------- Daizy Stepansky é socióloga, doutora em Comunicação e Cultura e professora da UFF *** Cabeça-de-bagre, este herói esquecido Os livros contam a história do futebol a partir dos vencedores, mas as revistas dos anos 50/60 abrem janelas deliciosas para o dia-a-dia de uma época de ouro [] Joaquim Ferreira dos Santos Reprodução[] [Revista] [] As histórias divertidas dos quase-craques que acabaram no meio do caminho foram eternizadas pelas revistas ilustradas Os novos livros sobre futebol são todos muito bem escritos, documentados e editados. Mas sofrem de um problema básico. Esqueceram as grandes peladas. Esqueceram os maravilhosos cabeças-de-bagre que não conseguiram deixar gravados seus nomes na história oficial. Como se fossem videoteipes impressos, os novos livros que chegam para faturar a Copa apostam só nos melhores momentos. Não há uma linha sobre caneladas célebres. Só heróis levantando taças. Eles falam de clássicos que com o passar do tempo vão ganhando tintas que os assemelham à Batalha das Termópilas. Falam de artilheiros que parecem guerreiros de Átila. Dão principalmente a impressão de que o mundo só pratica futebol a cada quatro anos e sempre no Sarriá ou no Azteca. O filtro da história despreza as minúcias que fazem a alegria do torcedor e acaba deixando tudo com um gosto sem graça de overlaping. O boleiro fominha, o arquibaldo doente não vão encontrar nos novos livros nada sobre Samarone, Coronel, Altair, Pompéia, Jadir e Parada, com suas façanhas que não entraram exatamente para a história, mas fazem a delícia nostálgica dos que caçam madeleines entre os alçapões de Bariri, Teixeira de Melo e Moça Bonita. Esses quase-craques, deserdados da memória, precisam ser garimpados nos sebos do Centro e da Zona Sul. Mas, aproveitem. Há boas ofertas de Manchete Esportiva, Revista do Esporte , Gazeta Esportiva Ilustrada com os sub-heróis dos anos 50 e 60, a época de ouro do futebol brasileiro. Até a semana passada, um sebo da Praça Tiradentes vendia, por R$ 5, uma Manchete Esportiva com a foto de capa (o ponta-direita Sabará tentando encobrir o goleiro Eli) dedicada ao prélio Madureira 3, Vasco da Gama 1, pelo Campeonato Carioca de 1958. Os novos historiadores do futebol esqueceram de anotar o jogo, e com toda razão. Mas qualquer amante do futebol percebe que a joelheira do goleiro, as meias descombinadas do ponta e a bola número 5, sem griffe mas brilhando de tanto sebo, são elementos tão comoventes numa capa quanto Belini levantando a Jules Rimet. As velhas revistas dos sebos são o contrário dos novos livros. Não têm pompa. Elas registram o dia-a-dia do futebol e, como ainda não possuem o necessário distanciamento histórico, se dão ao luxo disparatado ( Revista do Esporte , agosto de 67) de apontar Erandir, um atacante paraibano contratado pelo Vasco, como aquele que repetirá as glórias de Almir e Vavá. Os pesquisadores do futuro que separassem o joio do trigo. Num outro número, Vander, zagueiro do Atlético Mineiro, também ganha as honras de duas páginas para uma entrevista pingue-pongue. Não nega fogo e, orgulhoso, declara: ''Fumo 20 cigarros por dia.'' O cigarro na concentração, o sexo durante o campeonato, a camisa para fora do calção, a cambalhota como exercício de preparação física. Ninguém sabia que o futebol vivia seus últimos momentos de ingenuidade. A Gazeta Esportiva Ilustrada, editada em São Paulo, também não faz feio no número 177, de fevereiro de 1961. Até o início da semana, ela dormitava esquecida na calçada da Pedro Lessa, ao lado da Biblioteca Nacional, com o zagueiro Calvet, do Santos, na capa. Ele ainda não sabia que não iria à Copa do Chile, mas o repórter Rubens Resende lhe anotou todos os sonhos. Delém, o artilheiro do Vasco na temporada, hoje dedicado a descobrir valores para o River Plate, abriu seu apartamento para fotos e é mostrado bocejando, acordando solitário, ainda sem as louras com que o futuro encheria as camas dos craques. O perfil de Djalma Santos, nas páginas 24 e 25, é um clássico do politicamente incorreto. Ele é chamado de ''negro retinto''. Ou pelo eufemismo da época: ''rosadinho''. Os fatos tinham acabado de acontecer, e as revistas publicavam com a margem de erro inerente ao jornalismo de alta temperatura. Não, Fontana, o becão do Vasco, não se confirmaria como o novo Nílton Santos - embora a capa do número 444, de 1967, da Revista do Esporte (R$ 5 num sebo da Regente Feijó) o trate com uma dignidade que deixaria o futuro com dor de barriga de tanto rir. O ponta-esquerda Babá, destaque de um Flamengo 4, Canto do Rio 0, virou o personagem da semana da crônica de Nelson Rodrigues, na Manchete Esportiva de julho de 1958. Raramente repetiria o show, queimando a língua de Nelson que o dizia tão bom quanto o campeão do mundo Zagallo. Escrever livro de futebol, 45 anos depois das partidas, é mais seguro - mas o prazer do leitor é como ver Emerson jogar. A bola nos sebos é mais Ronaldinho. Onde mais, a não ser na deliciosa Revista do Esporte de 19 de agosto de 1967 (R$ 7 na Praça Tiradentes), o ponta de lança Dionísio, que viria a ser conhecido como o ''Bode Atômico'' do Flamengo, por suas cabeçadas, poderia dividir a capa com o mestre Ademir da Guia? *** Dois craques e o drama de uma Copa ''Eu sei que futebol é assim mesmo, um dia a gente ganha, outro dia a gente perde, mas por que é que, quando a gente ganha, ninguém se lembra de que futebol é assim mesmo?'' Craques são assim - jogam fácil, como se diz. Resolvem com simplicidade as questões mais intrincadas. Como fez Carlos Drummond de Andrade a vida inteira, falando de tudo - até do, como ele várias vezes chamou, jogo de bola. A Record lança o espetacular Quando é dia de futebol , reunião de textos organizada pelos netos do poeta, Luiz Maurício e Pedro Augusto. Entre eles, está Perder, ganhar, viver , réquiem inesquecível à Seleção de 82, publicado na capa do Caderno de Esportes do JB . Aos que preferem uma análise mais crua, O trauma da bola é a escolha mais que perfeita. São 56 textos de Saldanha escritos entre março e agosto de 82, nos quais ele demonstra por que estava certo quem desconfiou do mágico time de Zico, Falcão, Sócrates, Cerezo, Leandro e Júnior. As palavras fortes do colunista do JB carregam também profecias - a derrota da Seleção na Espanha foi a gênese do futebol opaco que garante fama e fortuna a gente como Luiz Felipe Scolari. [] Pobre jogo de bola [] Perder, ganhar, viver *** Nas peladas prevalece o critério da competência Quem manda no campo é sempre o craque, não o proprietário da bola de couro Arquivo JB [] [Pelé] [] O Rei Pelé brilha na Seleção Brasileira de 1970: mais um adversário perde o equilíbrio diante do maior jogador de todos os tempos Brasileiro joga futebol. Ou tenta, pelo menos uma vez na vida. Há exceções, inevitavelmente, mas a soma seria desconsiderada em recenseamentos sensatos por não ter alcançado o mínimo de 1%. Desde meados dos anos 30, quando esse esporte se transformou numa irremissível paixão nacional, os meninos do Brasil passaram a improvisar campos em ruas, várzeas, praças, becos, terrenos baldios, quintais, pátios - qualquer espaço suficiente para que dois times com pelo menos quatro jogadores duelassem - e consumaram a fundação do país do futebol. Consolidou-se a pátria da pelada, onde começa a termina o convívio com a grande arte. Na pelada se aprende a ginga, a cabeçada certeira, a finta desmoralizante, o chute de três dedos. Na pelada se aperfeiçoa o passe de trivela, o lançamento de muitos metros, o uso do calcanhar, o drible da vaca, o gol de letra, a bicicleta. A pelada é uma esplêndida lição de democracia, porque ali vigora o critério da competência, prevalece o talento. Mandam os melhores e mais brilhantes. O craque é o verdadeiro dono da bola, não quem detém sua posse material. Cumpre ao proprietário do mágico objeto de couro, quase sempre presenteado pelo pai, livrar um bando de moleques das bolas de meia ou de borracha. Mas o proprietário só alcancará o status de dono da bola se for do ramo, se souber matar no peito, baixar na terra e sair por aí driblando Deus e o mundo. Se não, terá de jogar no gol. Jogar no ataque - e na pelada só há goleiro e atacantes, porque brasileiro não nasceu para a defesa - é para quem sabe das coisas. Ser o primeiro entre os escolhidos para a montagem dos times que começa depois do par-ou-ímpar disputado por dois líderes mirins é o caminho mais curto para a notoriedade na infância - e, às vezes, o marco um na rota do estrelato. Os jovens capitães responsáveis pela divisão do elenco têm olhar aguçado. Costumam vislumbrar a centelha dos singulares mesmo num menino magro, de musculatura desprezível e jeito de quem havia pouco usava fraldas. Foi esse o caso do maior jogador de todos os tempos. Vale a pena rever as fotos de Pelé com 12, 13 anos trajando o uniforme do Bauru Atlético Clube, o ''Baquinho'' imortalizado depois de extinto por ter sido o trono do rei menino. Aquele negrinho mirrado sorri com a autoconfiança irresponsável de quem vê em cada jogo uma pelada antecipadamente vitoriosa. Ele se tinha habituado, nas ruas de terra de Bauru, a ser a primeira escolha de qualquer time. Mas talvez só tenha descoberto na Suécia, em 1958, que fora ungido pelos deuses. Já no crepúsculo da adolescência, o Pelé que chora nos ombros do goleiro Gilmar a conquista da Copa do Mundo não é tão diferente, nos contornos físicos, do atacante do Baquinho. Os franceses foram os primeiros a promover a sagração, endossada em seguida por todo o planeta, do Rei do Futebol. ''Ele é mais baixo do que eu imaginava'', murmura quem acaba de conhecê-lo. Com cerca de 1m70, jamais brilharia em esportes como o vôlei ou o basquete. De origem pobre, não poderia investir em modalidades caras. Ficou no futebol e encontrou seu porto. Foi o Atleta do Século 20. E jamais alguém conseguirá jogar como Pelé. (A.N.) ***


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