Bastidores Do Mundo Literário .


Borges e Machado: politicamente incorretos

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Crônica de Buenos Aires (Carlos Serapião)

Borges e Machado: politicamente incorretos

Certa vez, um repórter pediu a opinião de Borges sobre a cegueira.

"Foi a melhor das piores coisas que me aconteceram", disse o

escritor argentino. Sobre o Premio Nobel, que acabou não recebendo, Borges ironizou que, ao invés de coroar carreiras consagradas, o Nobel agora preferia revelar talentos desconhecidos. Mostrou-se mais argentino que nunca, ao declarar que na Europa não há europeus, e sim italianos, alemães, franceses, etc. Que europeus somos nós, sul-americanos, por estarmos acima das diferenças nacionais do Velho Continente. Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires, em 1899. No bairro de Palermo, terra natal do tango. Cresceu entre livros ingleses, estudou na Suíça, morou na Espanha, foi um inveterado viajante em 86 anos de vida. Encontram-se suas obras em qualquer livraria portenha. Em Buenos Aires, auditórios, bibliotecas e centros culturais levam seu nome. Internacionalmente famoso, e hoje objeto de culto na Argentina. Mas, em vida, como explica Emir R. Monegal em "Borges: uma poética da leitura", era acusado de distante da realidade do seu país. Replicava que a moda de usar temas locais na arte era de origem europeia e, portanto, devia ser recusada pelos nacionalistas que o criticavam por falar de outros lugares e épocas. Hoje, ao contrário, Borges é julgado sinônimo de sua cidade e época. Uma conhecida obra sobre Buenos Aires destaca a seguinte frase borgeana: "os anos que vivi na Europa são ilusórios, eu estava sempre (e estarei) em Buenos Aires". Suas verdadeiras viagens foram como leitor. O filósofo romeno Emil Cioran denominou-o um viajante imóvel e um sedentário nomade. Machado de Assis sofreu, meio seculo antes e no Brasil, a mesma acusação (ainda que em menor grau), dos que "só reconhecem espirito nacional nas obras que tratam de assunto local". Em defesa, dizia que o escritor pode ser "homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço". Qualquer semelhança não é mera coincidência. Borges e Machado vieram de ambientes culturais inseguros, dependentes do olhar europeu, apoiados no que havia de diferente e exótico localmente para definir a nacionalidade. Contra tal corrente, Machado de Assis criou um brasileirismo "interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial", conforme citado por Roberto Schwarz em "Um mestre na periferia do capitalismo". O autor de "Dom Casmurro" nunca saiu do Rio de Janeiro, cidade que cantou como poucos. Ao recusar ideologias nacionalistas datadas, Borges e Machado foram politicamente incorretos (emprego este termo no significado literal). Nos tempos da globalização, soaria ridículo criticar um artista por usar temas estrangeiros, até escolas de samba o fazem! Mas fica a pergunta: o que é, hoje em dia, politicamente correto ou incorreto no Brasil? Quem teria coragem de fazer uma lista e publicar? Daria um livro divertido, se questionasse as unanimidades de opinião ou dogmas que limitam nossa arte e, pior, tolhem nossa percepção da realidade. (extraído do JB) ***


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