contos de Minha Autoria.


O Marinheiro

A bordo do seu posto de trabalho, o marinheiro Matias Junior acompanhou, com um misto de expectativa e emocao , as últimas manobras e o atracamento do cruzador "Barroso", numa fria tarde de sexta-feira, em julho de 1970. Após ter navegado durante onze meses pelos mares da europa e da asia, Matias Júnior - no explendor de seus 20 anos - não conseguiu conter as lágrimas, ao derramar seu olhar sentimental sobre o berço natal, sua eterna e incomparavel Recife. depois dos salamaleques e rituais de praxe, nosso jovem marinheiro, todo garboso em seu impecável uniforme branco, pegou um coletivo nas proximidades do cais e dirigiu-se para um suburbio da belissima capital nordestina. No ônibus, ele se preparava, interiormente, para o reencontro com os seus. Quando a imagem da namorada Sueli tomou por completo a tela de seu pensamento, seu rosto foi iluminado por um largo sorriso.

O coletivo parou, matias júnior desceu e caminhou em sentido contrário ao do veículo, entrando por uma esquina. a emoção voltou a fustigar o peito do marinheiro que, ao abrir o portão, se viu naquele jardim, testemunha natural dos verdes anos de sua adolescência e também de sua maturidade. Então, Pitoco, um cachorro pequenês, deu o alarme, assim que o marinheiro apareceu na porta.

Em um instante, ele se viu envolvido por um turbilhão de braços que se multiplicaram em abraços. A família do marinheiro era constituída por seus pais, duas irmãs mais novas e um irmão caçula de 7 anos. As malas foram abertas e os presentes foram distribuidos, sem interromper a narrativa do jovem marinheiro. Seu pai o ouvia embriagado por uma nostalgia emanada de lugares que sequer conhecera.

O marinheiro caminhava pela casa paterna, descrevendo suas aventuras em alto mar e em terra, nas quais ele sempre surgia como uma espécie de Ulisses latino-americano. Repentinamente, parou de falar e o olhar agudo de jovem lobo do mar fixou-se na parede da sala de jantar. Na gaiola, saltitante no poleiro, estava Xuxu, seu galo de campina, que, aguardava angustiado a atencao do dono. De um salto, Matias Júnior pegou a gaiola e recomeçou a andar pela casa, fazendo a "corte" ao seu amigo alado. Falava com a ave, contava suas peripécias nos mares do estrangeiro, dizia de suas saudades e, durante longo tempo, o galo de campina era a única coisa que ele enxergava na casa.

Os familiares do rapaz acompanhavam consternados aquela comunhão do homem com o passarinho, cuja cumplicidade vinha desde os dez anos de idade do marinheiro, quando o recebera de um tio como presente de aniversário. Xuxu havia sido arrematado de um viajante vindo dos lados da Paraíba , quando o saltitante e impertigado galo de campina, passou a ser a menina dos olhos de Matias Júnior. O garoto passou a viver em função da ave que, em pouco tempo, aprendeu a reconhecê-lo, saudando-o com seu canto sempre que o avistava. Vibrava na gaiola, quando o garoto se aproximava e saltitava no poleiro, liberando seu canto cristalino e majestoso para deleite do rapaz.

Matias júnior adorava passear com seu amigo, conduzindo a gaiola nas mãos pelas ruas menos movimentadas de seu bairro ou presa no banco trazeiro da bicicleta. O tempo passou, Matias cresceu e Xuxú assumiu o porte de sua raça. A afeição entre os dois atingiu o máximo de uma identidade entre seres distintos.

O marinheiro continuava circulando pela casa, em um interminável diálogo com o passarinho. Acariciava o "menestreu alado" com uma mão, enquanto com a outra segurava o bichinho. De repente, ele parou no centro da sala e disse: - Vou prestar uma homenagem a este que considero meu melhor amigo. Vou dar-lhe a liberdade, em respeito a nossa grande amizade.

Dizendo isto, com o galo de campina entre as maos, ele se dirigiu ao fundo da casa , onde havia um quintal amplo com várias árvores frutíferas, delimitado por um muro alto ostensivo e proibitivo. Bem no centro do quintal, sob as vistas dos familiares, matias junior despediu-se do amigo com um beijo emocionado em sua imponente cabeça. Depois, arremessando-o cuidadosamente para o alto, soltoo-o...

O pássaro sobrevoou timidamente algumas árvores, sob olhares emocionados dos donos da casa. Inseguro, trôpego e desacostumado com a vida livre, Xuxú baixou vôo e pousou sobre uma cisterna, que havia no quintal. Amedrontada e pouco à vontade, a ave parou num canto, procurando se refazer. Neste exato momento, Bolinha (um gato angorá, também membro da família), que cochilava no muro ao lado da cisterna, despertou e avistou o desnorteado passarinho. Surpreso, Bolinha - agora bem disperto - marchou com seus passos decididos de caçador implácavel, na direção do atônito menestreu da natureza. Enquanto isto, o marinheiro Matias Junior, de volta ao centro da sala, retomava suas aventuras pelos mares do estrangeiro...

VALDENITO DE SOUZA Rio de Janeiro, agosto de 1999


página anterior.

Voltar para a página Principal.