Icones da literatura.


Mário Quintana - O feiticeiro do simples

*** Mário Quintana - O feiticeiro do simples (Nascido em Alegrete, em 30 de julho de 1906, falecido em Porto Alegre no ano de 1994.) -- Quando o cortejo fúnebre de Mario Quintana passou pelas ruas de Porto Alegre, rumo ao cemitério, o povo, embora triste pela perda de "seu poeta", aplaudia. Era o agradecimento inusitado e sincero ao homem que partia, deixando uma obra que durante décadas encantara Porto Alegre, o Rio Grande do Sul e o Brasil, pois Mario Quintana foi o mais nacional dos poetas gaúchos. Simplicidade, precisão na palavra, senso de humor, magia, eram ingredientes que o poeta manipulava com a sabedoria de um alquimista solitário, trabalhando no despojamento dos modestos quartos de hotel, redações de jornais e bares boêmios onde gastou distraidamente sua vida, escrevendo versos, crônicas, aforismos, epigramas e reflexões que ganharam o nome próprio de "quintanares", dado pelo também poeta Manuel Bandeira. Tudo isso sem pompa, sem solenidade, sem hermetismos. Fazia poesia das coisas mais simples _ um fio d'água escorrendo da velha torneira ou o silêncio das salas de espera _, de modo tão surpreendente que às vezes o leitor envolvido nas complicações do cotidiano acaba pego de surpresa, sendo obrigado a reler aqueles ditos singelos para apreender a mensagem poética que a simplicidade camufla. Feiticeiro do simples, Quintana foi o poeta do inesperado e do obtuso, o cantor do pouco importa, o dono da palavra exata para transmitir os sentimentos puros do menino teimoso que morava dentro daquele adulto cheio de meiguice e doçura, anônimo de si mesmo, como o definiu o jornalista e escritor Artur da Távola, que o considerava "um marginal da solenidade."A Academia Brasileira de Letras fechou-lhe a porta duas vezes. Talvez por lhe faltarem pompas e pelo excesso de simplicidade. Mas o povo nunca lhe fechou as portas de seu coração. Quintana era amado e respeitado como pouca gente foi, em sua terra e fora dela. Um abecê dos quintanares dá uma pequena amostra desse poeta, onde obra e jeito de ser se mesclavam, numa fascinante conjunção. Se o leitor de Problemas Brasileiros divergir da escolha, resta-lhe o expediente criativo de também organizar o seu abecê, repassando a bela obra de Mario Quintana, que começou a ser publicada e admirada com a edição de A Rua dos Cataventos, em 1950. (JORGE LEÃO TEIXEIRA) *** Um abecê de Quintana A de Ateus _ "Neste mundo de tantos espantos, cheio de mágicas de Deus, o que existe de mais sobrenatural são os ateus." B de Branca _ "Ela era quase incolor: branca, branca / de um branco que não se usa mais... / Mas tinha a alma furta-cor!" C de Cigarro _ "O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar..." D de Discrição _ "Não te abras com teu amigo / Que ele um outro amigo tem / E o amigo de teu amigo / Possui amigos também." E de Elas _ "O que elas dizem não tem sentido? Que importa? Escuta-as um momento. / Como quem ouve, entre encantado e distraído / A voz das águas... o rumor do vento." F de Fatalidade _ "Em todos os velórios há sempre uma senhora gorda que, em determinado momento, suspira e diz _ Coitado! Descansou..." G de Greta Garbo _ "O teu sorriso é imemorial como as Pirâmides / É puro como a flor que abriu na manhã de hoje..." H de Horror _ "Com seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação." I de Instrumento _ "Impossível fazer um poema / neste momento. / Não, minha filha, eu não sou a música / _ sou o instrumento. / Sou, talvez, dessas máscaras ocas / num arruinado monumento: / empresto palavras loucas / à voz dispersa do vento..." J de Janela Aberta _ "Passa nuvem, passa estrela, passa a lua na janela... / Sem mais cuidados na terra, preguei meus olhos no Céu / E o meu quarto pela noite, imenso e triste, navega... / Deito-me ao fundo do barco, / Sob os silêncios do Céu." K de Katherine _ "Passou despercebido o 50º aniversário de Katherine Mansfield, aquela que, depois de Tchekov, acabou com o conto anedótico de Maupassant." L de Leitura _ "Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir _ até onde? _ uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada." M de Milagre _ "O primeiro verso que um poeta faz é sempre o mais belo porque toda a poesia do mundo está em ser aquele o seu primeiro verso..." N de Netuno _ "Camões, / Seu nome retorcido como um búzio! / Nele sopra Netuno..." O de Olímpicos _ "Escusado dizer a um bom poeta que os seus versos não prestam: ele não acredita. Em compensação, se disseres a mesma coisa a um mau poeta, ele também não acredita." P de Partir _ "Eu sempre que parti, fiquei nas gares / Olhando, triste, para mim..." Q de Quebranto _ "Senhora, eu vos amo tanto / Que até por vosso marido / Me dá um certo quebranto..." R de Rua _ "Ruazinha onde Marta fia / E onde Maria, na janela, sonha." S de Sumiço _ "Era uma dessas mulheres que não se usam mais / Vestes de trevas e vidrilhos / Cabeleira trágica / Olheiras suspeitas / O grito horizontal de sua boca / Surgindo da noite. / Sumiu pela última porta do poema..." T de Tentação _ "Quem vê um fruto / Pensa logo num furto." U de Ultra-Rápido _ "Eu queria lhe propor uma troca de idéias... _ Deus me livre!" V de Vento _ "Passa o Rei com seu cortejo Passa o Deus no seu andor. E, milênios depois, neste caminho, apenas Ainda sopra o vento nas macieiras em flor." W de What Is _ "'What is a name?', indagava o poeta. Um nome, serve, em última instância, para uma lápide. Ou para uma estátua, geralmente eqüestre." X de Xifópago _ "Ser xifópago deve ser tão incômodo como ser casado." Y de Geraldy _ "Paul Geraldy _ bombom rançoso." Z de Perez _ "Edwiges era pálida e lia romances lacrimosos de Perez Escrich Tanto suspirou em cima deles que acabou fugindo com um caixeiro-viajante O tempo se desenrolava como um rio por entre as casas de porta e janela Pequenas vidas, pequenos sonhos." Homenagem ao poeta Mario Quintana, publicada logo após sua morte, na edição de maio/junho de 1994 Revista Problemas Brasileiros, março/abril 2000. *** DA DISCRIÇÃO: Não te abras com teu amigo Que ele um outro amigo tem. E o amigo do teu amigo Possui amigos também... Espelho Mágico - Mário Quintana *** EXAME DE CONSCIENCIA "Ha' noites que eu nao posso dormir de remorso por tudo o que eu deixei de cometer" DA PREGUICA "Por causa tua, quantas ma's acoes deixei de cometer" DA VIUVEZ "Quem fica viuvo e o defunto... Por que este nao casa mais" *** "A gente deve apertar uma campainha com tanta delicadeza como se aperta o umbigo da dona da casa" VOLUPIAS DA VIDA "Despertador e' bom para a gente se virar para o outro lado e dormir de novo" DAS OPINOES "Cada pessoa pensa como pode ..." RESPOSTA A UMA ENTREVISTA - Qual o maior poeta brasileiro atual? - Deixa disso. Nenhum poeta e' cavalo de corrida para se obrigado a chegar em primeiro lugar. PROPOSTA "Ja' que existe uma 'semana inglesa' aos sabados a tarde, bem poderia haver uma 'segunda brasileira de manha' para a gente curar a ressaca do domingo..." *** "Tu me disseste que sim... Mas teu infiel coracao, De um lado para o outro a bater, Esta' dizendo que nao" POR MOTIVOS OBVIOS "As sereias usam feche ecler" TRECHO DE ENTREVISTA - Por que voce nunca se casou? - Por uma simples questao de estatistica ha' no mundo muito mais viuvas do que viuvas. PRECES "Rezar e' uma falta de fe': Nosso Senhor bem sabe o que está fazendo". TENHO PENA DA MORTE Tenho pena da morte - cadela faminta - a que deixamos a carne doente e finalmente os ossos, misera- veis que somos... O resto e indevoraval. DISTANCIA Essas distancias astronomicas nao sao tao grandes assim: basta estenderes o braco e tocar no ombro do teu vizinho. CANÇÃO DO AMOR IMPREVISTO Eu sou um homem fechado. O mundo me tornou egista e mau. E minha poesia e' um vicio triste, Desesperado e solitario Que eu faco tudo por abafar. Mas tu apareceste com tua boca fresca de madugada, Com teu passo leve, Com esse teus cabelos... E o homem taciturno ficou imovel, sem compreender nada, numa alegria atonita... A subita alegria de um espantalho inutil Aonde viessem pousar os passarinhos! HAI-KAI DA COZINHEIRA A cozinheira preta preta Preta e gorda Com seu fresco sorriso de lua... PERVERSIDADE Alarmar senhoras gordas é um dos maiores encantos desta e da outra vida. *** O MAPA (Mário Quintana) Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo... (É nem que fosse meu corpo!) Sinto uma dor esquisita Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei... Há tanta esquina esquisita Tanta nuança de paredes Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...) Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada No vento da madrugada, Serei um pouco do nada Invisível, delicioso Que faz com que o teu ar Pareça mais um olhar Suave mistério amoroso Cidade de meu andar (Deste já tão longo andar!) E talvez de meu repouso... *** "Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissao nao transfigurada pela arte e indecente. Minha vida esta nos meus poemas, meus poemas sao eu mesmo, nunca escrevi uma virgula que nao fosse uma confissao. Ah! mas o que querem sao detalhes, cruezas, fofocas... Ai vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades so ha duas: ou se esta vivo ou morto. Neste ultimo caso e idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade." O texto acima foi escrito pelo poeta para a revista Isto E de 14/11/1984. Nasceu em Alegrete, comecou a escrever no jornal "O Estado do Rio Grande do Sul". Em 1940 lancou seu primeiro livro A rua dos cataventos, ao que se seguiram Cancoes - 1946; Sapato florido - 1948; O Aprendiz de feiticeiro - 1950; Espeho magico - 1951; Caderno H - 1973; Quintanares - 1976; Apontamentos de Historia sobrenatural - 1976; A vaca e o hipogrifo - 1977; Prosa e verso - 1978; Bau de espantos - 1986; Preparativos para viagem - 1987; A porta giratoria - 1988; A cor do invisivel - 1988. Faleceu em 05/05/1994 O poeta canta a si mesmo O poeta canta a si mesmo porque nele e que os olhos das amadas tem esse brilho a um tempo inocente e perverso... O poeta canta a si mesmo porque num seu unico verso pende lucida, amarga uma gota fugida a esse mar incessante do tempo... Porque o seu coracao e uma porta batendo a todos os ventos do universo. Porque alem de si mesmo ele nao sabe nada ou que deus por nascer esta tentando agora ansiosamente respirar. neste seu pobre ritmo disperso! O poeta canta a si mesmo porque de si mesmo e diverso. Mario Quintana Terra Terra! um dia comera os meus olhos... Eles eram no entanto o verde unico de tuas folhas o mais puro cristal de tuas fontes... Meus olhos eram os teus pintores! Mas, afinal, quem precisa de olhos para sonhar? A gente sonha e de olhos fechados. Onde quer que esteja... onde for que seja... Na mais densa treva eu sonharei contigo, minha terra em flor! Mario Quintana Pequeno poema didatico O tempo e indivisivel. Dize, qual o sentido do calendario? Tombam as folhas e fica a arvore, contra o vento incerto e vario. A vida e indivisivel. Mesmo a que se julga mais dispersa e pertence a um eterno dialogo a mais inconsequente conversa. Todos os poemas sao um mesmo poema, todos os porres sao o mesmo porre, nao e de uma vez que se morre... Todas as horas sao horas extremas! Mario Quintana Ah, sim, a velha poesia... Poesia, a minha velha amiga... Eu entrego-lhe tudo a que os outros nao dao importancia nenhuma... A saber: O silencio dos velhos corredores uma esquina uma lua (porque ha muitas, muitas luas...) O primeiro olhar daquela primeira namorada que ainda ilumina, o alma, como uma tenue luz de lamparina, a tua camara de horrores. E os grilos? Nao estao ouvindo,la fora, os grilos? Sim,os grilos... Os grilos sao os poetas mortos. Pois bem, as vezes de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que parece que nada tem a ver com os ingredientes, mas que tem por isso mesmo um sabor total: eternamente este gosto de nunca e de sempre. Mario Quintana *** -- TENHO PENA DA MORTE --Morte Tenho pena da morte - cadela faminta - a que deixamos a carne doente e finalmente os ossos, misera- veis que somos... O resto e indevoraval. -- DISTANCIA Essas distancias astronomicas nao sao tao gran- des assim: basta estenderes o braco e tocar no ombro do teu vizinho. -- Cancao do amor imprevisto Eu sou um homem fechado. O mundo me tornou egista e mau. E minha poesia e' um vicio triste, Desesperado e solitario Que eu faco tudo por abafar. Mas tu apareceste com tua boca fresca de madugada, Com teu passo leve, Com esse teus cabelos... E o homem taciturno ficou imovel, sem compreender nada, numa alegria atonita... A subita alegria de um espantalho inutil Aonde viessem pousar os passarinhos! -- Solau a Moda Antiga Senhora, eu vos amo tanto Que at=E9 por vosso marido Me da'um certo quebranto... Pois que tem que a gente inclua No mesmo alastrante amor Pessoa, animal ou cousa Ou seja la' o que for, So' porque os banha o esplendor Daquela a quem se ama tanto? E sendo desta maneira, Nao me culpeis, por favor, Da chama que ardente abrasa O nome de vossa rua, Vossa gente e vossa casa E vossa linda macieira Que ainda ontem deu flor..." Mario Quintana *** JARDIM INTERIOR - Mário Quintana Todos os jardins deviam ser fechados, com altos muros de um cinza muito pálido, onde uma fonte pudesse cantar sozinha entre o vermelho dos cravos. O que mata um jardim nao é mesmo a ausência nem o abandono... O que mata um jardim é esse olhar vazio de quem por eles passa indiferente. Beijos, Angela. *** P.S.: Só prá "cantar" um pouco: Escrevo diante da janela aberta. Minha caneta é cor das venezianas: Verde!... E que leves, lindas filigranas Desenha o sol na página deserta! Não sei que paisagista doidivanas Mistura os tons... acerta... desacerta... Sempre em busca de nova descoberta, Vai colorindo as horas quotidianas... Jogos da luz dançando na folhagem! Do que eu ia escrever até me esqueço... Pra que pensar? Também sou da paisagem... Vago, solúvel no ar, fico sonhando... E me transmuto... iriso-me... estremeço... Nos leves dedos que me vão pintando! - Mario Quintana - *** CANÇÃO DE OUTONO - Mario Quintana - O outono toca realejo No pátio da minha vida. Velha canção, sempre a mesma, Sob a vidraça descida... Tristeza? Encanto? Desejo? Como é possível sabê-lo? Um gozo incerto e dorido de carícia a contrapelo... Partir, ó alma, que dizes? Colhe as horas, em suma... mas os caminhos do Outono Vão dar em parte alguma! * Se eu Fosse um Padre Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões, não falaria em Deus nem no Pecado - muito menos no Anjo Rebelado e os encantos das suas seduções, não citaria santos e profetas: nada das suas celestiais promessas ou das suas terríveis maldições... Se eu fosse um padre eu citaria os poetas, Rezaria seus versos, os mais belos, desses que desde a infância me embalaram e quem me dera que alguns fossem meus! Porque a poesia purifica a alma ... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte - um belo poema sempre leva a Deus! * Canção da Garoa Em cima do telhado Pirulin lulin lulin, Um anjo, todo molhado, Soluça no seu flautim. O relógio vai bater: As molas rangem sem fim. O retrato na parede Fica olhando para mim. E chove sem saber porquê E tudo foi sempre assim! Parece que vou sofrer: Pirulin lulin lulin... *** Mãe... São três letras apenas As desse nome bendito: Também o céu tem três letras E nelas cabe o infinito. Para louvar nossa mãe, Todo o bem que se disser Nunca há de ser tão grande Como o bem que ela nos quer. Palavra tão pequenina, Bem sabem os lábios meus Que és do tamanho do Céu E apenas menos que Deus! - Mário Quintana - *** VOLUPIAS DA VIDA "Despertador e' bom para a gente se virar para o outro lado e dormir de novo" DAS OPINOES "Cada pessoa pensa como pode ..." RESPOSTA A UMA ENTREVISTA - Qual o maior poeta brasileiro atual? - Deixa disso. Nenhum poeta e' cavalo de corrida para se obrigado a chegar em primeiro lugar. PROPOSTA "Ja' que existe uma 'semana inglesa' aos sabados a tarde, bem poderia haver uma 'segunda brasileira de manha' para a gente curar a ressaca do domingo..." *** "Tu me disseste que sim... Mas teu infiel coracao, De um lado para o outro a bater, Esta' dizendo que nao" POR MOTIVOS OBVIOS "As sereias usam feche ecler" TRECHO DE ENTREVISTA - Por que voce nunca se casou? - Por uma simples questao de estatistica ha' no mundo muito mais viuvas do que viuvas. PRECES "Rezar e' uma falta de fe': Nosso Senhor bem sabe o que esta' fazendo". *** O mais célebre verso de Mario Quintana, o mais poderoso verso de Mario Quintana, o mais imortal verso de Mario Quintana, logicamente aquele em que o nosso maior poeta colocou a sua dor suprema – que os poetas são tão maiores quanto mais imensa tiver sido a sua dor –, o verso mais rico de Quintana, a mais instigante pérola da bateia esplendente do nosso grande artista, foi este quarteto imperecível: Da vez primeira que me assassinaram, Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha. *** A primeira e unânime reflexão inspirada neste verso é que o poeta afirmou que a vida consiste em várias idas e vindas, vários renascimentos e mortes. Que a vida é feita de equívocos escuros e de iluminados rasgos, de marchas a ré e de primeiras marchas. De tropeços e de saltos. De refugos e de despliegues, acudindo-me a linguagem chucra e castelhana que for significar os cavalos que estacam diante das varas ou os que voam soberanos sobre os obstáculos do hipismo. *** O poeta quis dizer que vida é feita de muitas mortes, mas deixou implícito que vivemos também muitas vidas que acabarão redundando em outras tantas mortes. As mortes dele e nossas são as grandes decepções, as incríveis desilusões, os fundos infortúnios. Já as nossas vidas e as diversas vidas do poeta consistem nas nossas alegrias, nas nossas esperanças, nas nossas lutas, nas nossas conquistas, dele e nossas (um poeta, um escritor, um jornalista, só se fazem entender ou sentir quando as suas dores ou seus contentamentos se fundem ou se identificam com os de seus leitores). *** Traduzam-se as mortes de Quintana por suas lágrimas, imaginem-se as vidas de Quintana (e as nossas) por seus sorrisos. A vida é uma banca de jogo, que paga e recebe. Quem se atreve a viver ou quem se obriga a viver, no jogo duro ou delicioso da vida, deve resignadamente esperar o que a sorte decide, a euforia do pagamento ou o rotundo fracasso da perda. *** Quando me caso, vivo. Quando me separo, morro. Quando me acode o amigo, vivo. Quando me trai ou me abandona, morro. Quando recebo ou assisto a uma sentença injusta que me condena ou condena a outro, morro. Quando me atinge em cheio ou atinge a outro uma sentença isenta, equânime e justa, vivo. Quando me traem ou quando me traio, morro. Quando eu não traio, eis-me redivivo. Quando minto, morro. Quando sou veraz, vivo. Quando sou claro, vivo. Quando escondo, morro. Quando desanimo e desisto, morro. Quando me entusiasmo, vivo. Quando não me compreende ou não me socorre meu pai, morro. Mas logo em seguida tenho um filho e vivo. Os espíritas, os reencarnacionistas e os messiânicos, quando morrem, vivem. Os eremitas, os trágicos e os pessimistas, quando vivem, morrem. *** E os poetas, como Mario Quintana, como prova esta coluna, vivem muito mais e eternamente depois que morrem. Nunca foram tão vivos os nossos grandes e amados poetas mortos. Paulo Santana 18/05/2001 - Zero Hora ***


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