Bastidores Do Mundo Literário .


A vida literária brasileira nos dois últimos séculos registrada em cartas.

*** República da escrivaninha Um dos melhores livros da Bienal não está à venda: uma antologia de cartas de escritores [O livro reproduz cartas de escritores brasileiros] A vida literária brasileira nos dois últimos séculos foi registrada em cartas. Eram uma continuação dos bate-papos que se arrastavam pelas madrugadas, nas mesas de bar ou nos cafés, que a era do e-mail, antes de sepultar, ressuscitou. Passados os anos, percebe-se que as idas e vindas dessa correspondência têm muito a esclarecer sobre vários momentos literários brasileiros. Um exemplo de sua importância está em República das Letras - de Gonçalves Dias a Ana Cristina César: Cartas de escritores brasileiros (1865-1995) , produzido pela SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) e pela Fagga Eventos. Distribuída como brinde durante a festa de inauguração da Bienal no Rio, com tiragem limitada de 2 mil exemplares, a coletânea foi talvez um dos melhores livros publicados durante a feira, mas, infelizmente, não foi colocada à venda. Má notícia para leitores e pesquisadores. Organizado pelo escritor e crítico literário Silviano Santiago, o livro tem notas explicativas que contextualizam as referências citadas e uma breve introdução sobre o autor de cada carta, 41 ao todo, pinçadas de arquivos ou de outras coletâneas. Algumas são inéditas, como a que Autran Dourado escreveu para o jornalista Wilson Figueiredo, vice-presidente do Jornal do Brasil, e que jamais foi enviada. Figueiredo só chegou a lê-la agora, passados mais de dez anos. Como explica Santiago na abertura do livro, a idéia de juntar cartas assinadas por autores tão diversos no tempo e no estilo foi recriar o clima da República das Letras, convidando o leitor a se sentar à mesa e ''puxar conversa'' com os escritores. Prática que, no passado, foi bastante comum. ''Perdeu-se a vida anárquica e boêmia que era alimentada pelo convívio com os mais velhos numa mesa de bar ou de restaurante (...) Perdeu-se o saber cigano e anônimo que instituía o prazer da conversa como bálsamo para as calosidades da vida literária. (...) Perdeu-se a vida literária, tal como vinha sendo definidana república das letras'', escreve Santiago. Reportando-se a Brito Broca, primeiro biógrafo da vida literária no Brasil, o organizador refaz a atmosfera do século 19, e mesmo o início do 20, quando qualquer aspirante a literato podia se juntar aos escritores já consagrados. Bastava selecionar a roda que mais convinha ao seu ''apetite literário e social''. Os points eram Café Paris, o Papagaio, a Confeitaria Colombo, entre outros, espalhados pelas ruas do Centro do Rio ou de São Paulo. Sentando-se à mesa, os curiosos aproximavam-se das grandes figuras literárias da metrópole. ''Dependendo das circunstâncias, podiam até fazer parte da turma'', conta Santiago. Uma prova de que essa relação de amizade entre autores iniciantes e consagrados era comum está na carta de Godofredo Rangel - escritor sempre incentivado pelo amigo Monteiro Lobato - endereçada a Machado de Assis, em 1907. Num tom empolado, cheio de cerimônia, ele conta que hesitou um ''ror de vezes'' para, através da carta, chegar até o escritor que lhe inspirava tanta admiração. Havia entre os autores da literatura de um país ainda em formação uma necessidade quase incontrolável de justificar a produção de seus textos. Como se a obra não pudesse existir sem a explicação de sua gênese. Gonçalves Dias, por exemplo, fala a Dom Pedro II do que o levou a criar um dicionário da língua tupi em carta possivelmente datada de 1857; em 1865, José de Alencar esclarece as razões de ter escrito Iracema ao Visconde de Jaguaribe, e Machado de Assis justifica a José de Alencar a necessidade de sua produção crítica, que exerceu antes de virar romancista e contista, para contribuir com a ''reforma do gosto que ia se perdendo''. Os gestos de gentileza eram freqüentes entre os autores. As obras iam e vinham à espera de um comentário, de preferência um elogio. Em uma carta inédita de Ciro dos Anjos a Carlos Drummond de Andrade, o autor de O amanuense Belmiro diz estar enviando os originais do romance para que o poeta lhe fizesse um ''parecer literário''. Mas confessa o medo de se aproximar do mito: ''Não o faço sem algum receio. Em cada capítulo, sempre procurei imaginar - ao escrever - o que o poeta Carlos poderia pensar disso ou daquilo.'' Nem sempre, porém, a resposta era positiva. Em alguns casos, os ''competidores'', embora amigos, não deixavam passar em branco os lapsos e os senões. É o caso da carta que Marques Rebelo escreve a Pedro Nava, em 1973, em que faz a revisão de Baú de ossos . Fernando Sabino faz o mesmo com um livro de contos de Clarice Lispector, numa correspondência rasgada de elogios e entusiasmo, mas na qual faz pequenas alterações no texto da autora. As desavenças entre os escritores mostram que nem tudo eram flores nas escrivaninhas dos homens de letras. Prova disso são os ataques de Lima Barreto a João do Rio, a quem chama de ''paquiderme'' numa carta cheia de rancor endereçada a Monteiro Lobato, em 1919. Barreto se revoltava contra todos os escritores que ganhavam fama - e dinheiro - entre os leitores cariocas: ''Há uma coisa que ele [o leitor]pede ao autor: posição. Austregésilo pode escrever a maior tolice, seja sobre mecânica celeste, ou sobre a cura da bouba das galinhas, que se venderá fatalmente'', escreveu. A partir das cartas, pode-se rever também como se processaram alguns importantes movimentos literários do país, sob o ponto de vista de seus principais atores. Neste sentido, uma das correspondências mais interessantes é, sem dúvida, a que Oswald de Andrade escreve a Monteiro Lobato em 1943, por ocasião dos 25 anos de Urupês . O mais polêmico dos intelectuais da Semana de Arte Moderna de 1922 passa a limpo o movimento e as utopias da época. E mais: afirma que Lobato fora o grande culpado de não ter a sua merecida parte de leão nas transformações tumultuosas, mas definitivas, da Semana. ''Você foi o Gandhi do modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesse e noutros setores, a mais eficaz resistência passiva de que se possa orgulhar uma vocação patriótica.'' Oswald toca de leve no nome de Anita Malfatti, principal motivo da briga entre Lobato e modernistas. Outras cartas se destacam, como o texto encantador que Lobato escreve a Godofredo Rangel em 1904 (que está em A barca de Gleyre ) e a carta em que o poeta Mário Quintana reclama a Augusto Meyer, em 1968, das péssimas condições de trabalho a que tinha sido submetido, quando as mesas de madeira foram trocadas pelas de aço. Num humor sarcástico, ele diz: ''Não posso criar em estado de humilhação. É preciso uma certa euforia para escrever, não achas?'' E tem ainda Graciliano Ramos traduzindo para o ''brasileiro'' seu São Bernardo , Ana Cristina César, enjoada das teorias e dos ''delírios de Derrida'', e mais dezenas de cartas, que recuperam as ansiedades, os conflitos, as contrariedades e, sobretudo, as condições em que os maiores nomes da literatura brasileira criaram suas obras. Espera-se que a antologia ganhe em breve uma edição comercial. A maior dificuldade talvez seja lidar com os direitos autorais dos espólios, uma vez que as cartas que ainda não caíram em domínio público foram cedidas apenas por se tratar de um brinde e não de uma edição para o mercado. Mas vale a pena investir no projeto. Do contrário, este precioso material, de enorme interesse para estudantes e pesquisadores, só poderá ser garimpado nos sebos da cidade. [31/MAI/2003] Os amigos de Ribeiro Couto Ribeiro Couto morreu há 40 anos, deixando um enorme acervo de cartas para os escritores modernistas, como Manuel Bandeira Autor que o tempo quase apagou da literatura brasileira, depois de sua morte, há exatos 40 anos, Ruy Esteves Ribeiro de Almeida Couto esteve no epicentro de uma revolução, como mostram os estudos sobre sua correspondência. Os mais importantes vêm sendo realizados por José Almino de Alencar, presidente da Fundação Casa de Ruy Barbosa, e a escritora Elvia Bezerra. Motivos para escrever não faltavam a Ribeiro Couto, que viveu a maior parte da vida em cidades do interior de Minas Gerais e de São Paulo, onde trabalhou como delegado de polícia e promotor público, e no exterior, por conta da carreira diplomática. Morreu em 30 de maio de 1963, em Paris. Nas cartas ao amigo de vida inteira Manuel Bandeira, a quem apresentou aos modernistas, Ribeiro aparece como um grande ''farejador de novidades'' estrangeiras. Não por acaso, foi um dos primeiros a aderir às idéias modernistas. Mesmo assim, recusou-se, por respeito aos mestres parnasianos e simbolistas, a participar dos eventos da Semana de Arte Moderna, atitude compartilhada com Manuel Bandeira. O autor, que entrou aos 36 anos para a Academia Brasileira de Letras, mas ficou conhecido por ter escrito a história que deu origem à novela Cabocla , exibida pela TV Globo, foi um dos luminares da poesia penumbrista. Dele, Mário de Andrade diria: ''É um pândego delicioso; a delícia da pimenta que arde, é ruim mas a gente continua comendo pimenta. Isso: o Ribeiro Couto me parece mais uma especiaria que um alimento.'' Mário e Ribeiro Couto tinham temperamentos bastante semelhantes, mas talvez por isso incompatíveis. Nas cartas que trocaram, percebe-se um diálogo muitas vezes violento, eventualmente penoso, mas certamente instigante para ambos os lados. Mário o chamava de ''sujeito brumoso''. Couto critica o tom retumbante e a ironia feroz dos modernistas. Preferia a sombra, subvertendo progressivamente a perspectiva do leitor. [] Conversas de vida inteira de Ribeiro Couto e Bandeira [31/MAI/2003] Conversas de vida inteira de Ribeiro Couto e Bandeira Diálogo revela a grande rede de correspondência montada pelos modernistas Quando foram publicadas as Poesias reunidas de Ribeiro Couto, em 1960, Manuel Bandeira escreveu no Jornal do Brasil de 2 de novembro de 1960: ''Sua poesia continuou sempre sendo a anotação arguta dos momentos raros da vida, aqueles momentos de 'indecisão delicada'. Momentos de subúrbio, digamos assim, quando do luar descem coisas - 'certas coisas'. Nunca lhe interessaram as polêmicas sobre o que seja poesia. 'É poesia? Não é poesia? Quem saberá jamais?' Todos os problemas estavam resolvidos para ele 'pela aceitação da simplicidade'.'' Dir-se-ia um auto-retrato, um comentário sobre a sua própria poesia. E esse traço de identificação acompanhou uma amizade de toda uma vida, iniciada em 1919, quando Ribeiro Couto lera o poema ''Cartas de meu avô'' e fora, por causa da admiração suscitada, apresentado ao autor. Pouco depois, um Couto ''expansivo'' e ''novidadeiro'' viria a apresentar um Bandeira, tímido e recluso, à rapaziada modernista: ''Foi por intermédio dele que tomei contato com a nova geração literária do Rio e de São Paulo. Aqui com Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Di Cavalcanti, em São Paulo, com os dois Andrades, Mário e Oswald [...]Eu já estava bem preparado para receber de boa cara os desvairismos de Mário, porque Ribeiro Couto, grande farejador de novidades na literatura da Itália, da Espanha e da Hispano-América [...]me emprestava os seus livros'', diz Bandeira em Itinerário de Pasárgada. Durante os anos 20 do século passado, no auge do movimento modernista, Ribeiro Couto viveu a maior parte do tempo em várias cidades do interior de Minas e São Paulo, onde exerceu os cargos de delegado de polícia e promotor público. A distância motivou uma vasta correspondência entre os poetas, que se encontra na Fundação Casa de Rui Barbosa. Foi reunida por mim, em volume ainda inédito, cujo título - Pouso Alto, o nome de uma dessas cidades - é glosado por Bandeira em uma das carta de 25 de agosto de 1925: ''Couto: Pouso Alto é um nome estupendo. Parece nome de ninho de águia. Pouso Alto. Absolutamente sereno. É um programa.'' A correspondência endereçada a Couto foi mais bem preservada: são 170 cartas de Bandeira e somente 18 cartas de Couto, entre 1919 e abril de 1929. Durante esse período, inicia-se e consolida-se a carreira literária de Ribeiro Couto e foram escritos ou publicados os dois volumes mais expressivos da poesia de Manuel Bandeira: Poesias (com ''A cinza das horas'', ''Carnaval'' e ''Ritmo dissoluto''), em 1924, e Libertinagem , com poemas de 1924 a 1930, publicado em 1930. Mais tarde, por ocasião das homenagens aos 50 anos do amigo, em 1936, Couto escreveria: ''Fui o primeiro leitor de quase todos os poemas escritos depois do ''Carnaval'' [1919]. Antes quando residíamos na mesma cidade, depois à distância (que a correspondência constante e as alegres visitas anulavam), durante dez anos, pelo menos, não se passou semana sem que trocássemos essas impressões risonhas ou tristes, sempre leais e completas em que o coração se purifica.'' As cartas entre os modernistas convivem em simbiose com o processo de criação literária. Nesse período, anterior à telefonia interurbana, quando a vida intelectual, antes concentrada quase que exclusivamente na Corte, começava a tomar formas significativas em outros centros urbanos, os modernos vão construir uma vasta teia de correspondência, através da qual circulam os manuscritos, opiniões estéticas, sugestões bibliográficas, conspirações para a publicidade de livros e personagens, intrigas, suspiros e queixas. Nesse mar de cartas, as que trocaram Bandeira e Couto tomam uma importância tão expressiva, quanto a correspondência entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira, pelo menos, aos olhos deste último: ''Só sei admirar de todo coração. E eu chamo admirar de todo coração, poder gostar e falar franco, como faço com Ribeiro Couto e com você'', escrevia Bandeira a Mário, em 11 de maio de 1925. Em várias partes do conjunto de cartas paira a sombra da correspondência entre Mário de Andrade e Bandeira. Uma provocação lançada por Mário a Bandeira era respondida diretamente a Ribeiro Couto, como se os três mantivessem uma discussão simultânea. ''Não concordo com o Mário no preconceito de novidade: posso encontrar poesia em lugar-comum sentimental. Daí gostar de coisas suas que ele acha sem importância. Posso eu achar também sem importância e no entanto gostar. Você é justamente um desses poetas que chateiam os outros com coisas sem importância. Creio que você entende bem o sentido em que emprego a expressão 'coisa sem importância'. Digo isso porque o Mário faz diferença entre coisa sem importância com interesse artístico e coisa sem importância mesmo. Pois pode me suceder que eu goste e me comova com a 'coisa sem importância mesmo'.'' Essas cartas são uma festa para os olhos do voyeur literário. Por vezes, nesses relatos da vida miúda dos dois amigos, dos seus empregos, das suas dificuldades, não há como evitar se perceber o trabalho de dois escritores que se mostram um para o outro, numa escritura entre entendidos, cada um sublinhando, a seu modo, o estilo familiaresco, desabusado, introduzindo a nota irônica, o traço rápido na descrição das cenas. De tal maneira que, às vezes, o enunciar do poema (no caso abaixo, inédito) chega como uma continuação natural da carta, como nesta enviada por Bandeira em 10 de janeiro de 1928: ''Esta manhã ele [Gilberto Freyre]me contou um episódio onde eu descobri incontinenti o self-made poem. Lá vai: Apresentação Na sala da redação do grande matutino O redator-secretário fez a apresentação: 'Fulano, uma glória nacional: Sicrano, esperança do norte.' A esperança do norte não disse nada. A glória nacional também.'' Em 1929, Ribeiro Couto ingressou na carreira diplomática e viveu sobretudo na Europa. Morreu a 30 de maio de 1963, em Paris. Os dois amigos se escreverão até o fim: conversa da vida inteira. (extraido do JB) [31/MAI/2003] ***


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